Esta sexta-feira, 1º de julho, marca o início do segundo semestre de 2022. É o momento de fechar uma nova parcial dos melhores filmes do ano.
A regra é clara: só valem títulos que estrearam no Brasil — seja no cinema ou diretamente no streaming — a partir de 1º de janeiro (mas há duas exceções, explicadas na lista abaixo).
Como em qualquer lista, haverá ausências sentidas (alguém pode perguntar, por exemplo, onde estão Belfast e Licorice Pizza, ambos indicados na principal categoria do Oscar) e presenças discutíveis — normal, pois trata-se de um ranking afetivo. Por outro lado, acho digno de nota que os 33 escolhidos representam ou no mínimo estão ambientados em 18 países: Argentina, Brasil, China, Estados Unidos, França, Índia, Irã, Islândia, Japão, Líbano, México, Noruega, Romênia, Ruanda, Suécia, Suíça, Taiwan e Ucrânia. E, refletindo um raro momento de reconhecimento no Oscar — mãos femininas ergueram as estatuetas de melhor filme e de melhor direção em 2021 (Nomadland, de Chloé Zhao) e em 2022 (No Ritmo do Coração, de Siân Heder, e Jane Campion, por Ataque dos Cães) —, 12 diretoras foram destacadas.
A seleção está em ordem puramente alfabética. Clique nos links se quiser saber mais.
1) O Acontecimento (2021)
Vencedor do Leão de Ouro e do prêmio da crítica no Festival de Veneza, o filme da diretora Audrey Diwan se passa na França de 1963, mas discute um assunto — o direito ao aborto — que ganhou enorme atualidade nos últimos dias. No Brasil, veio à tona o caso da menina de 11 anos que teve negada pela Justiça a interrupção da gravidez, prevista em lei, pelo fato de a garota ter sido vítima de estupro e correr risco. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte revogou a decisão conhecida como Roe vs. Wade, de 1973, que garantia esse direito às mulheres de todo o país. Agora, a decisão passa a ser dos Estados — pelo menos 13 deles vão tornar novamente proibida a prática.
No filme, Anamaria Vartolomei (troféu César de atriz revelação) interpreta Anne, uma estudante promissora que descobre ter engravidado. Em nome de seu futuro, ela decide abortar, desafiando a lei em uma jornada por conta própria. De modo seco e amparada pela atuação estoica de Vartolomei, Diwan retrata o quão solitária — e, também por isso, perigosa — pode ser a luta das mulheres por seus direitos. (Está em cartaz no Festival Varilux de Cinema Francês, com sessões no Espaço Bourbon Country nesta sexta, 1º/7, às 16h20min, no Cine Grand Café, no dia 5/7, às 16h30min, e na Sala Paulo Amorim, em 12/7, às 19h. Estreia nos cinemas em 7/7)
2) Ascensão (2021)
Foi um dos cinco indicados ao Oscar de melhor documentário. Estadunidense de mãe chinesa, a produtora e diretora Jessica Kingdon estreia no comando de um longa-metragem com este filme observacional e impressionista — não há entrevistas nem narrações. Ela viajou por 51 locações na China para filmar cenas cotidianas, estruturadas em três temas: trabalho, consumismo e lazer. Em uma jornada visual fascinante, Ascensão demonstra o progresso econômico e a divisão de classes cada vez maior. Começa com as hordas de trabalhadores buscando empregos de baixa remuneração. Depois veremos, entre outros cenários, a linha de montagem de bonecas sexuais de última geração, um curso de boas maneiras nos negócios, escolas de guarda-costas e de mordomos e um imenso e lotadíssimo parque aquático. (Paramount+)
3) Batman (2022)
Com um trabalho fascinante de fotografia, design de produção e edição, o diretor Matt Reeves mistura terror, o cinema noir dos anos 1940, o filme de serial killer (como Seven e Zodíaco), o thriller político e até a dinâmica das duplas policiais. Na trama de quase três horas, Batman (Robert Pattinson) e o tenente Gordon (Jeffrey Wright) precisam caçar uma versão nada cômica do Charada (Paul Dano), que começou pelo prefeito uma matança em Gotham City. Zoë Kravitz encarna Selina Kyle, a Mulher-Gato, John Turturro é o mafioso Carmine Falcone, e Colin Farrell está irreconhecível como o Pinguim. Pattinson é um dos grandes destaques de Batman: pálido e com um tom deprê, o ator foi uma escolha perfeita para a abordagem proposta por Reeves. Nela, o trauma de infância e a sede de vingança que deram origem ao Batman são sombras tão pesadas que anulam a existência de Bruce Wayne. (HBO Max)
4) Contratempos (2021)
Um dos destaques no Festival Varilux de Cinema Francês, o filme de Eric Gravel acompanha a saga de Julie (Laure Calamy), que luta sozinha para criar seus dois filhos pequenos no subúrbio e manter seu emprego em Paris, como camareira-chefe em um hotel. Quando ela finalmente consegue uma entrevista para um cargo correspondente a seu currículo e as suas aspirações, eclode uma greve geral, paralisando o transporte. Ganhador dos troféus de melhor direção e melhor atriz na mostra Horizontes do Festival de Veneza, Contratempos é muito eficiente em mostrar um problema universal — o da precarização do trabalho — por uma perspectiva individual (e feminina, e materna) e muito envolvente ao intrincar os dramas pessoais de Julie aos contratempos coletivos. À segurança e à sensibilidade da direção de Gravel, soma-se o notável desempenho de Calamy, que dosa confiança, fragilidade, perspicácia e um pouco de desatino. (Sessões no Espaço Bourbon Country, no dia 5/7, às 21h, no Cine Grand Café, em 6/7, às 21h25min, e na Sala Paulo Amorim, nos dias 14/7, às 19h, e 16/7, às 17h)
5) Dog: A Aventura de uma Vida (2022)
O filme que fecha uma tetralogia animal informal — os outros são First Cow (2020), Pig (2021) e Lamb (2021) — marca a estreia do ator Channing Tatum e do roteirista e produtor Reid Carolin como diretores. Os dois já tinham trabalhado juntos em Magic Mike (2012) e Magic Mike XXL (2015). O protagonista é Jackson Briggs, dispensado do Exército por estresse pós-traumático. Empregado em uma lanchonete, ele tenta se candidatar a um rodízio militar no Paquistão, mas isso depende de uma recomendação de seu ex-comandante. Para tentar comovê-lo, Briggs aceita a missão que surge após a morte de outro traumatizado veterano de guerra, Riley Rodríguez: levar ao funeral dele Lulu, sua companheira canina no combate ao Estado Islâmico. O problema é que, após sete anos no front, a própria Lulu também carrega traumas. Ao longo do caminho de 2,4 mil quilômetros, homem e animal terão de aprender a conviver um com o outro e com suas próprias dores, além de enfrentarem desafios no contato com os demais personagens. E mais não conto para não estragar surpresas emocionantes ou engraçadas. (Disponível para aluguel em Amazon Prime Video)
6) Drive my Car (2021)
O Oscar de melhor filme internacional coroou uma trajetória que inclui o prêmio de roteiro no Festival de Cannes, o Globo de Ouro, o Bafta e o Critics' Choice. Seu diretor, Ryûsuke Hamaguchi, não tem pressa para contar suas histórias. Já fez um filme de quatro horas e 15 minutos e outro de cinco horas e 17 minutos. Drive my Car tem três horas de duração, mas é tão imersivo que poderíamos passar mais tempo junto aos personagens, ouvindo seus longos diálogos sobre paixões, segredos e arrependimentos. Aliás, é tão intimista que realmente nos sentimos muito próximos dos personagens. O protagonista é Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), um ator e diretor de teatro que tem sua vida abalada por perdas e traumas. Não por acaso, um dos cenários principais do filme é Hiroshima, cidade arrasada pela bomba atômica em 1945. Yûsuke viaja a Hiroshima para montar a peça Tio Vânia, de Tchékhov. Por causa das regras do festival de teatro, lá não poderá dirigir seu amado e bem cuidado carro, um Saab vermelho com 15 anos de uso e no qual escuta fitas cassete com falas dos espetáculos. Aí, ele passa a interagir com Misaki (Tôko Miura), a motorista contratada pelo festival. Ela também é atormentada pela dor e pela culpa. Nas ruas e nas estradas de Hiroshima, um lugar marcado pela morte e pela destruição, mas também pela resiliência e pela reconstrução, Yûsuke e Misaki vão, pouco a pouco, revelando os buracos de suas almas e encurtando a distância. No caminho, surgem curvas dramáticas, sinuosas, mas nunca bruscas, e sempre em direção a algum tipo de cura. (MUBI)
7) Emergência (2022)
Eis um ótimo filme que pode passar despercebido. Está disponível em uma plataforma de streaming que não costuma ser tão badalada. O diretor, Carey Williams, e os atores (RJ Cyler, Donald Elise Watkins e Sebastian Chacon) não são muito conhecidos no Brasil. A sinopse também não ajuda muito: "Prontos para uma noite de festas lendárias, três estudantes universitários terão de pesar os prós e os contras de chamar a polícia quando deparam com uma situação inesperada". Parece que vamos assistir a mais uma comédia juvenil com elementos de suspense. Essa impressão é reforçada no primeiro diálogo, no campus de uma universidade, onde o baladeiro Sean provoca o certinho Kunle a respeito de uma garota. Mas não demora para que a gente perceba que Emergência é um filme diferenciado. Aliás, o fato de que esses dois personagens, Sean e Kunle, são negros já deveria acender um sinal de alerta: o tema, trabalhado entre o cômico e o desconfortável, entre o irônico e o amargo, é o racismo. (Amazon Prime Video)
8) Escrevendo com Fogo (2021)
Concorrente ao Oscar de documentário e dirigido por Rintu Thomas e Sushmit Ghosh, começa explicando, em um letreiro, o sistema de castas da Índia. À margem da hierarquia, estão os dalits: os párias, os impuros, os intocáveis. São dalits as editoras e repórteres do Khabar Lahariya, único veículo de comunicação indiano com comando feminino e foco do filme. Foi fundado em maio de 2002, com sede no Estado mais populoso do país, Uttar Pradesh, situado ao norte e notório pelos crimes contra as mulheres. No início de Escrevendo com Fogo, Meera Devi, repórter-chefe do Khabar Lahariya, está em trabalho de apuração. Na companhia do marido, uma mulher enumera os dias do mês de janeiro nos quais foi estuprada por homens que invadiram sua casa quando ela estava sozinha: 10, 16, 18, 19... A polícia não quis abrir inquérito, diz o casal. Na delegacia, um oficial afirma a Meera que desconhece o caso. (Consta que apenas uma a cada quatro denúncias termina em condenação na Índia, país que costuma chocar o mundo com episódios de estupro coletivo, conforme visto no filme de ficção Mom e na série policial Crimes em Déli.) (NOW e disponível para compra ou aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV e Google Play)
9) A Filha Perdida (2021)
Apesar de ter estreado em 31 de dezembro de 2021, entra na lista porque, na prática, só aconteceu em 2022. Em seu primeiro longa-metragem como diretora, a atriz estadunidense Maggie Gyllenhaal disputou o Oscar de roteiro adaptado — A Filha Perdida é baseado no romance homônimo publicado pela escritora italiana Elena Ferrante em 2006. Oscarizada por A Favorita (2018), a inglesa Olivia Colman concorreu de novo ao prêmio de melhor atriz no papel de Leda Caruso, uma professora universitária que, durante suas férias em uma praia da Grécia, fica obcecada por uma jovem mãe (Dakota Johnson) e sua filha. A partir de então, Leda se vê confrontada por memórias dos tempos em que ela própria (encarnada por Jessie Buckley, indicada ao Oscar de atriz coadjuvante) tinha de lidar com suas duas crianças. A trama de mistério e perigo é entrelaçada à abordagem, com despudor, de temas como maternidade, sexualidade, papéis sociais e ambição profissional. (Netflix)
10) Fresh (2022)
Caberia bem em um Fantaspoa. Tem um orçamento pequeno, pelo menos para os padrões dos EUA; traz a assinatura de uma diretora estreante (Mimi Cave), duas condições que, combinadas ou separadamente, são comuns no Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre; seus dois atores principais, Daisy Edgar-Jones (da série Normal People) e Sebastian Stan (o Soldado Invernal da Marvel), não têm pudores para abraçar o bizarro; e o filme arrisca-se à mescla de gêneros — no caso, o suspense policial, o terror e a comédia. Mais não dá para dizer, porque Fresh é um prato que, quanto menos soubermos de seus ingredientes, mais poderemos degustá-lo. Mas também pode ser que nos repugne, por causa do tema abordado: a violência contra as mulheres (Star+)
11) O Homem do Norte (2022)
É o terceiro filme do diretor Robert Eggers, o mesmo de A Bruxa (2015) e O Farol (2019). Em O Homem do Norte, ele conta a história de uma vingança viking. O protagonista vivido pelo bombadíssimo Alexander Skarsgård se chama Amleth e é baseado na lenda escandinava que inspirou a peça Hamlet, de Shakespeare. Depois de testemunhar a morte do pai, o rei Aurvandil (Ethan Hawke), traído pelo irmão bastardo do monarca, Fjolnir (Claes Bang), Amleth jura vingar o pai e salvar a mãe (Nicole Kidman). Os grandes momentos não estão nas explosões de violência nem no clímax, no qual a computação gráfica tem forte presença. São as passagens em que Eggers estende um olhar mais antropológico para os vikings, permitindo recepções paradoxais. (Disponível no NOW)
12) Klondike: A Guerra na Ucrânia (2022)
Vencedor do prêmio de melhor direção em longas estrangeiros no Festival de Sundance e do Prêmio do Júri Ecumênico no Festival de Berlim, o filme escrito, dirigido e editado por Maryna Er Gorbach se passa em 2014. Irka, a protagonista interpretada por Oksana Cherkashyna, e seu marido, Tolik, vivem em Donetsk, nas proximidades da turbulenta fronteira entre Ucrânia e Rússia. Na primeira cena, descobrimos que o casal aguarda o primeiro filho. Assim que Tolik diz que quer se mudar para longe da guerra, uma bomba destrói parcialmente a casa dos personagens.
Mas Irka está decidida a ser mãe ali mesmo. Tenta manter uma rotina — ordenha a vaca, limpa a casa — como forma de lidar com o horror e o absurdo da guerra. Une seu instinto de sobrevivência ao amor pelo país. Enquanto isso, Tolik é pressionado por seus amigos separatistas pró-Rússia a se juntar a eles. A tensão aumenta com a visita do irmão de Irka, um soldado nacionalista. A situação se complica ainda mais quando um avião civil, o Boeing 777 da Malaysian Airlines, cai na região, matando 298 pessoas, provavelmente abatido por engano. A tragédia não é fictícia: aconteceu em 17 de julho de 2014. Se Klondike fosse um filme de Hollywood, veríamos cenas de ação e catástrofe, mas aqui essas coisas são pano de fundo. O foco está no impacto da guerra em uma família comum. (Belas Artes à La Carte e NOW)
13) Lamb (2021)
Representando a Islândia, o primeiro longa-metragem dirigido por Valdimar Jóhannsson ficou entre os 15 semifinalistas do Oscar de melhor filme internacional. Também recebeu um prêmio pela originalidade na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes e conquistou três troféus em Sitges, prestigiada competição espanhola de terror e fantasia: melhor filme, diretor estreante e atriz (a sueca Noomi Rapace). Com toques de terror folclórico e drama existencialista, a história se passa em uma fazenda de ovelhas, onde um casal sem filhos — Ingvar (Hilmir Snær Guðnason) e Maria (Noomi Rapace) — se vê às voltas com um misterioso bebê. Sim, é um filhote de ovelha, como o cartaz entrega. Mas convém não revelar mais da sinopse. O que dá para dizer é que Lamb trata de como lidamos com o luto e das consequências que podemos sofrer quando desafiamos a vontade da natureza. E vale avisar que os 105 minutos de duração transcorrem vagarosamente, criando uma atmosfera asfixiante que combina com a gélida paisagem, até chegar a um clímax poderoso. (MUBI)
14) Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental (2021)
Se o título do ganhador do Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2021 não for um alerta suficiente, convém avisar aos espectadores mais pudicos que resolverem assistir ao filme romeno: Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental começa mostrando o vídeo da transa de um casal — incluindo masturbação, felação e penetração — que acabou viralizando na internet, para a desgraça solitária da personagem feminina, a professora de escola interpretada por Katia Pascariu. O diretor Radu Jude divide a trama em um prólogo, três partes e um epílogo, dosando humor absurdo, comentário político e experimentação formal. (Em cartaz na Sala Paulo Amorim, às 15h)
15) Neptune Frost (2021)
Concorrente no troféu Caméra d'Or, para estreantes, no Festival de Cannes de 2021, e exibido na competição do Fantaspoa de 2022, o filme do casal Saul Williams (músico, poeta e ator dos EUA) e Anisia Uzeyman (atriz e cineasta de Ruanda) é uma mescla de musical afrofuturista, romance queer e ficção científica politicamente engajada. Em um vilarejo perto de uma mina de coltan (muito utilizada na fabricação de celulares, notebooks e afins), encontram-se o mineiro Matalusa (Kaya Free) e Neptune, intersexual em fuga — o papel é ora interpretado por Elvis Ngabo, ora por Cheryl Ishejar. Variando o idioma — do suaíli ao inglês e ao francês, heranças dos colonizadores —, os personagens de Neptune Frost cantam: "Vamos hackear / Os direitos à terra e à propriedade / A história bancária / Vamos questionar o negócio da escravidão e o livre trabalho / Vamos hackear / A ambição e a ganância / O tratamento de uma fé em detrimento de outra". Depois, questionam a visão eurocêntrica de mundo ("Eles pensam como o livro deles manda") e o consumo ocidental baseado na exploração africana: "Usam nosso sangue e suor para se comunicar uns com os outros / Mas nunca escutam nossa voz". (Foi exibido no Fantaspoa e não tem previsão de estreia no Brasil)
16) A Noite do Fogo (2021)
Ganhou menção honrosa na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes, foi um dos 15 semifinalistas do Oscar de melhor filme internacional, representando o México, e valeu a Tatiana Huezo uma indicação ao troféu do Sindicato dos Diretores dos EUA na categoria de estreante - embora ela não seja: assinou os documentários El Lugar más Pequeño (2011) e Tempestade (2016). Há semelhanças temáticas e estilísticas entre as três obras. Em A Noite do Fogo, Huezo observa o cotidiano de um povoado violentado pelo narcotráfico pelos olhos de três meninas: Ana (vivida por Ana Cristina Ordóñez González na infância e por Marya Membreño na adolescência), Maria (Blanca Itzel Pérez/Giselle Barrera Sánchez) e Paula (Camila Gaal/Alejandra Camacho). O perigo e a morte estão sempre nas redondezas, o silêncio e a fuga são aliados vitais, o medo dita os passos — sobretudo os das mães e os das filhas, como enfatiza o título brasileiro do romance em que a ficção se baseia: Reze pelas Mulheres Roubadas. (Netflix)
17) Pequena Mamãe (2021)
Diretora de um dos mais lindos e arrebatadores títulos do século 21 (Retrato de uma Jovem em Chamas), a francesa Céline Sciamma apresenta aqui um pequeno grande filme. Pequeno porque dura apenas 70 minutos (transcorridos sem pressa nenhuma, como é característico da cineasta: sua câmera deixa que as coisas aconteçam, que os personagens sintam) e traz como protagonista uma menina de oito anos, que circula por poucos cenários. Grande porque, com uma mescla de economia narrativa e simbolismo sofisticado, Pequena Mamãe trata de temas complexos e perenes: o luto, a infância, a memória. (Amazon Prime Video)
18) Perfeitos Desconhecidos (2022)
Trata-se de uma das muitas versões internacionais da homônima comédia dramática italiana lançada em 2016 pelo cineasta Paolo Genovese. Já houve adaptações na Alemanha, na China, na Espanha, na Grécia, na República Tcheca... Esta aqui merece destaque porque é a primeira produção árabe da Netflix — e porque causou polêmica no Oriente Médio desde seu lançamento, no final de janeiro. Os motivos, cabe ao espectador descobrir: revelá-los seria dar spoiler a quem ainda não conhece a história. Com direção do libanês Wissam Smayra, o filme acompanha um grupo de sete amigos (incluindo três casais) que, durante um jantar, concorda em participar de um jogo perigoso: eles deixam os celulares desbloqueados na mesa, expondo-se ao risco de ligações e mensagens revelarem segredos, traições e quetais. Perfeitos Desconhecidos consegue equilibrar bem as doses de humor e de drama, fazendo um retrato do carinho e da hipocrisia que podem coexistir em um relacionamento. O elenco conta com Nadine Labaki, diretora de Cafarnaum (2018), que ganhou prêmios no Festival de Cannes e concorreu ao Oscar, ao Globo de Ouro e ao Bafta de melhor filme internacional, e a estrela egípcia Mona Zaki. (Netflix)
19) A Pior Pessoa do Mundo (2021)
O título dirigido por Joachim Trier (de Oslo, 31 de Agosto) rendeu à protagonista, Renate Reinsve, o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes e foi indicado aos Oscar de filme internacional e roteiro original. Trata-se de uma encantadora subversão das comédias românticas e um provocador retrato dos millenials. Narrado em um prólogo, 12 capítulos e um epílogo com durações e humores variados, expõe as angústias, as buscas e a inconstância dessa geração, que é encarnada pela personagem de Reinsve, Julie. Beirando os 30 anos, ela sai da faculdade de medicina para a psicologia, depois se descobre fotógrafa, mas acaba como vendedora em uma livraria. Suas desventuras incluem o romance com um quadrinista quarentão, Aksel (Anders Danielsen Lie) — responsável por reflexões argutas sobre arte e finitude - e o flerte com o jovem Eivind (Herbert Nordrum), que rende uma das sequências mais inebriantes da temporada. Ah, e A Pior Pessoa do Mundo termina com uma versão em inglês de Águas de Março (Tom Jobim) na voz de Art Garfunkel. (Foi exibido nos cinemas e ainda não tem data de estreia no streaming)
20) Pig: A Vingança (2021)
O subtítulo acrescentado no Brasil dá a ideia de que o filme dirigido pelo estadunidense Michael Sarnoski será uma mistura de excentricidade e violência. Ainda mais que o personagem principal é vivido por Nicolas Cage, que já há um bom tempo vem encarnando tipos bizarros ou brutos. A sinopse, é verdade, também sugere um caminho trilhado outras tantas vezes pelo ator: a jornada de autodestruição, o sacrifício e a explosão de violência em busca de algum tipo de redenção. Cage interpreta o ermitão Rob, que mora em uma floresta do Oregon na companhia de uma porca. Farejadora, ela é sua companheira na procura por trufas negras, um dos fungos comestíveis mais caros do mundo. O único contato de Rob com a sociedade se dá nas quintas-feiras, quando recebe a visita de seu jovem comprador (Alex Wolff). É uma espécie de paraíso, até que acontece uma coisa que, parece, vai fazer Pig descambar para um filme do tipo John Wick. Mas não é por aí. A história traz uma surpresa atrás da outra, a cada camada mostrando mais beleza e se tornando, claro, mais profunda. (Globoplay e Telecine)
21) Pleasure (2021)
É o filme que desnuda a indústria pornô. Embora não faltem cenas com pênis eretos e expostos, a ênfase está em indústria. No seu primeiro longa-metragem, a diretora sueca Ninja Thyberg adota o olhar de uma atriz novata — interpretada com assombro pela estreante Sofia Kappel — para retratar o negócio do sexo explícito na Califórnia. Ganhamos acesso a bastidores que vão desde os termos de um contrato e uma espécie de glossário da profissão até as técnicas (ou mesmo improvisos) demandadas em uma produção. Pleasure acompanha a jornada de Bella Cherry, o pseudônimo artístico de Linnéa, garota de 19 anos que trocou a Suécia por Los Angeles em busca do estrelato. Mas até onde ela está disposta a ir? No fundo, este é um filme sobre as relações de poder no universo do trabalho. Sobre como podemos ser manipulados e sobre como nossas ambições podem nos dessensibilizar. No fim do dia, quem nunca se perguntou: vale a pena? (MUBI)
22) Red: Crescer É uma Fera (2022)
É significativo que a Pixar tenha escolhido Red: Crescer É uma Fera para ser seu 25º longa-metragem de animação. Trata-se de um marco na história do estúdio: é o primeiro dirigido exclusivamente por uma mulher, Domee Shi; é o primeiro com elenco predominantemente asiático; e é o primeiro a tratar de puberdade e menstruação — daí o "ficando vermelho" do título original (Turning Red). (Disney+)
23) Sempre em Frente (2021)
Dirigido por Mike Mills, Sempre em Frente é o filme que o ator Joaquin Phoenix fez para exorcizar Coringa (2019). Após sofrer física e psicologicamente para encarnar o atormentado Arthur Fleck, em Sempre em Frente ele vive uma história sobre empatia e esperança e até se permite ter uma pança. Seu personagem, Johnny, é um jornalista de rádio que está dando início a um novo projeto: entrevistar crianças e adolescentes de várias partes dos Estados Unidos para saber o que elas esperam do futuro (e também como se sentem no presente). A certa altura, Johnny terá de cuidar do sobrinho de nove anos, Jesse (Woody Norman), para que a mãe dele (Gaby Hoffmann) possa resolver questões ligadas ao ex-marido e pai do garoto. (Amazon Prime Video)
24) Soul of a Beast (2021)
Se a gente resumir ao mínimo, a trama do filme suíço em que o nome de Lorenz Merz aparece nos créditos de diretor, roteirista, produtor, diretor de fotografia, editor e compositor pode parecer convencional — um triângulo amoroso entre os desajustados jovens Gabriel (Pablo Caprez), seu melhor amigo, Joel (Tonatiuh Radzi), e a namorada dele, Corey (Ella Rumpf, do filme Raw e da série Tokyo Vice). Mas há elementos extras que conjuram uma atmosfera constante de risco e de imprevisibilidade. Para começar, Gabriel tem um filho pequeno, Jamie, que cuida sozinho. O trio envolve- se com drogas alucinógenas, anda de moto em alta velocidade, invade, à noite, o zoológico de Zurique... Corey tem aquela mistura explosiva de urgência e inconsequência: "Sempre tive essa sensação, desde criança. De que não há tempo. De que tenho de fazer tudo agora", ela diz a Gabriel quando o convida para viajar junto à Guatemala, de onde desceriam de carro até a Terra do Fogo.
"Nada dura" — eis outra frase a ressoar em Soul of a Beast, um dos melhores filmes do ano graças também às escolhas estéticas de Merz. Ao filmar na proporção 4: 3, que diminui a área de tela (é um quadrado, e não o tradicional retângulo), o diretor cria não só um ambiente claustrofóbico, sufocante. Também se permite aproximar mais a câmera dos rostos e dos corpos dos personagens, que preenchem o quadro com uma intensidade arrebatadora, mesmerizante. (Foi exibido no Fantaspoa e não tem previsão de estreia no Brasil)
25) Summer of Soul (2021)
Ganhou o Oscar, o Bafta e o troféu da Associação dos Produtores dos EUA. Como indica o subtítulo — (...ou Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada) —, resgata um evento que havia sido apagado da memória "oficial". É o Harlem Cultural Festival, que, por seis finais de semana seguidos, em 1969, reuniu alguns dos maiores nomes da música negra estadunidense da época: Stevie Wonder, Nina Simone, B.B. King, Sly & the Family Stone, Gladys Knight & The Pips, The 5th Dimension... O filme dirigido pelo produtor musical, DJ e jornalista Ahmir "Questlove" Thompson intercala as apresentações com depoimentos de artistas e de pessoas comuns que ajudaram a lotar um parque no Harlem, bairro de Nova York. Há uma narrativa brilhante que vai dando conta do contexto social, político e cultural, da luta contra o racismo, do papel do gospel ("Nós não vamos ao psiquiatra, nós vamos à igreja", diz um dos espectadores) e da valorização das origens africanas. Explica-se, por exemplo, por que a população negra dos EUA deu tão pouca bola à chegada do homem à Lua, ocorrida em meio ao festival. Summer of Soul ganhou o prêmio especial do júri e o troféu do público no Festival de Sundance e está indicado também ao Bafta nas categorias de documentário e edição. (Foi exibido pelo Telecine em janeiro e fevereiro e, por enquanto, não tem previsão de reestreia no Brasil)
26) Titane (2021)
Julia Ducournau fez história no Festival de Cannes do ano passado. Primeiro por apresentar um filme em que a personagem principal é uma assassina serial que faz sexo com um carro — deve ter sido ousadia demais para a Academia de Hollywood, que deixou Titane de fora da lista dos 15 semifinalistas do Oscar de melhor longa internacional. Depois porque, quase 30 anos após a conquista da neozelandesa Jane Campion com O Piano (1993), a diretora e roteirista francesa tornou-se a segunda mulher na história a ganhar a Palma de Ouro.
Como em Raw (2016), a cineasta tem uma jovem como protagonista e trabalha questões como identidade e sexualidade — na obra anterior, uma vegetariana que estuda Veterinária vira canibal. Para tanto, Ducournau não se furta de lançar mão de imagens perturbadoras e da violência gráfica. O corpo, seja o da atriz Agathe Rousselle, que interpreta a dançarina Alexia, seja o do ator Vincent Lindon, que encarna um bombeiro à procura do filho desaparecido, é um personagem à parte em Titane. "Eu sou muito, muito interessada em corpos. Gosto muito de filmá-los e gosto de usar os corpos dos meus personagens para falar sobre a sua psique", disse ela em entrevistas. "O que adoro na gramática do terror corporal é que, se você desligar o som da TV e assistir ao filme, não só ainda entende o enredo, como também entende o que está acontecendo dentro do personagem e como ele se sente, porque é retratado em sua pele e em seu corpo." (MUBI)
27) Top Gun: Maverick (2022)
Continuação de um filme icônico dos anos 1980, Top Gun: Ases Indomáveis (1986), a nova aventura aérea estrelada por Tom Cruise voa muito além do saudosismo. As ótimas cenas de ação também convidam à reflexão sobre temas bem atuais, como a substituição do humano pela máquina, e sobre a Hollywood contemporânea. Mas é claro que também há um olhar para o passado. Um olhar e os ouvidos. O diretor Joseph Kosinski começa Maverick reproduzindo a abertura do primeiro Top Gun. Um letreiro apresenta a escola de elite para aviadores da Marinha dos EUA, criada em 1969 e apelidada de Top Gun. No crepúsculo, vemos a movimentação em um porta-aviões. Os aviões são diferentes, mas a música é a mesma. Na sequência, o agora capitão Pete Mitchell, codinome Maverick, veste a famosa jaqueta de couro com emblemas bordados, monta em sua moto Kawasaki e parte rumo a uma base militar. Esse exercício de nostalgia é um cumprimento aos fãs e um alerta aos mais jovens, que podem ficar alheios à graça de algumas piadas e indiferentes à carga emocional. O bom é que o roteiro recapitula momentos importantes. E que o filme de 2022 é muito melhor do que o original. Tom Cruise prova que ainda se pode fazer mágica à moda antiga. E com sucesso: com US$ 1 bilhão arrecadados, é a maior bilheteria de 2022. (Em cartaz nos cinemas)
28) A Tragédia de Macbeth (2021)
Escrita por William Shakespeare entre 1603 e 1607, Macbeth é uma peça tão atemporal no retrato que faz da ambição humana, da corrupção do poder e do peso da culpa, que está sempre ganhando novas adaptações. A atual é a primeira produção que o cineasta estadunidense Joel Coen realiza sem a companhia do irmão, Ethan Coen, com quem assinou, entre outros títulos, Barton Fink: Delírios de Hollywood (1991), Fargo (1996) e Onde os Fracos Não Têm Vez (2007). Por um lado, em A Tragédia de Macbeth o diretor mantém a ambientação medieval e preserva o texto original, com a linguagem poética, irônica e plena de metáforas concebida por Shakespeare. Por outro, como um reflexo de nossa época, mais inclusiva, escala um punhado de atores negros para personagens importantes — a começar pelo protagonista, Denzel Washington (indicado ao Oscar), e por Corey Hawkins, que interpreta Macduff. Merecidamente, também disputou as estatuetas douradas de melhor fotografia e design de produção. (Apple TV+)
29) A Tristeza (2021)
Vencedor dos prêmios de melhor filme e efeitos especiais na mostra internacional do Fantaspoa 2022, A Tristeza é o título mais violento do ano. Como o título sugere, o realizador canadense radicado em Taiwan Robert Jabbaz apresenta um cardápio bem pesado. Não há açúcar, embora haja afeto. É o que une o par central, o jovem casal Jim (interpretado por Berant Zhu) e Kat (vivida por Regina Lei). Eles acordam para mais um dia em Taipé, capital do país onde ninguém está levando muito a sério uma pandemia — que surgiu "justo em ano eleitoral", ouve-se em um comentário na TV. Assim que Jim deixa Kat na estação do metrô, o terror toma conta da cidade. A explosão de violência e de sangue inclui membros decapitados por tesouras de jardinagem, olhos perfurados com um cabo de guarda-chuva, torturas com arame farpado, mordidas que dilaceram a vítima, estupros coletivos, atos de necrofilia... Trata-se menos de uma alegoria apocalíptica da covid-19 do que uma distopia psicopolítica: o que seria de uma sociedade polarizada se a gente só atendesse aos impulsos do id? Que civilização seria possível se não houvesse as instâncias mediadoras e repressoras do ego e do superego? E em que velocidade todas as construções sociais podem ruir, fazendo desaguar um contagiante e interminável banho de sangue? (Foi exibido no Fantaspoa e não tem previsão de estreia no Brasil)
30) Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (2022)
A dupla Daniels (Dan Kwan e Daniel Scheinert) conta a história de uma imigrante chinesa, Evelyn Wang (Michelle Yeoh), que convive com algumas pressões: a auditoria que a receita federal (a cargo da personagem de Jamie Lee Curtis) faz sobre sua lavanderia, um casamento em crise, a busca pela aprovação do pai e a relação com uma filha que vem se distanciando. Para piorar as coisas, Evelyn descobre sua existência em infinitos universos paralelos e precisa acessar as experiências e habilidades de suas contrapartes para combater a ameaça de um ser maligno. Embora no fundo seja meio meloso, é também o filme mais maluco da temporada. Onde mais se vê pessoas que têm salsichas no lugar dos dedos? Onde mais se vê — e se ouve! — rochas filosofando à beira de um penhasco? Onde mais uma pochete e um dildo anal serão peças fundamentais em impressionantes cenas de ação? Aliás, em que título de ação vamos encontrar referências tão surpreendentes quanto àquelas a Amor à Flor da Pele (2000), romance já clássico de Wong Kar-wai ambientado na Hong Kong da década de 1960, e a Ratatouille (2007), a oscarizada animação da Pixar sobre a aliança firmada entre um rato cozinheiro e um jovem auxiliar em um famoso restaurante em Paris? (Em cartaz nos cinemas)
31) Turma da Mônica: Lições (2021)
Lançado nos cinemas em 30 de dezembro de 2021, foi o filme brasileiro de verão em 2022, atraindo 500 mil espectadores nas primeiras duas semanas de exibição. Baseado na homônima história em quadrinhos dos irmãos Vitor Cafaggi e Lu Cafaggi e dirigido por Daniel Rezende (o mesmo de Laços, de 2019), Turma da Mônica: Lições tem ares de Universo Cinematográfico Marvel. Pais, fiquem tranquilos: os personagens criados por Mauricio de Sousa não descambam para a pancadaria típica dos Vingadores nem acessam algum tipo de realidade alternativa, como no recente Homem-Aranha: Sem Volta para Casa. Mas, sim, o coelho Sansão é sacudido tanto quanto o martelo de Thor, há uma dupla ameaça física a nossos heróis mirins e o que acontece em uma peça de teatro — ou seja, em uma dimensão paralela — tem impacto dramático no mundo real. E mais: a exemplo da franquia inspirada nos quadrinhos estadunidenses, a adaptação do gibi brasileiro homônimo investe no povoamento do bairro do Limoeiro (estreiam Tina, Rolo e Franjinha, entre outros) e em cenas pós-créditos carregadas de surpresa, encanto e promessa. (Amazon Prime Video)
32) Um Herói (2021)
O diretor é iraniano, Asghar Farhadi, e a história se passa no Irã, mas Um Herói entrou na seleção do Festival Varilux de Cinema Francês porque a produtora e distribuidora, a Memento Films, é da França. Na trama, Rahim (Amir Jadidi) está na prisão devido a uma dívida que não conseguiu pagar. Durante uma licença de dois dias, ele tenta convencer o seu credor a retirar a sua queixa mediante o pagamento de parte da quantia. Mas as coisas não correm de acordo com o plano…
Com dois Oscar de melhor filme internacional no currículo — A Separação (2011), também vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim, e O Apartamento (2016) —, Farhadi é hábil em lançar mão dos códigos do suspense, do policial e do drama de tribunal para refletir sobre a sociedade contemporânea em seu país e retratar conflitos familiares. Em Um Herói, o cineasta apresenta uma história kafkiana, mas com um protagonista ambíguo. Aliás, seus personagens não são mocinhos nem vilões, mas pessoas que, diante das circunstâncias, do azar, da pressão ou das oportunidades, podem conquistar ou falhar. Nós, como espectadores, somos instigados a nos posicionar em situações complexas nas quais todos os envolvidos têm um pouco de razão — logo, injustiças são frequentes, ainda mais em um mundo ultramidiático e apressado como o atual. O irônico é que o próprio Farhadi viu-se no meio de um furacão por causa de Um Herói. Uma ex-aluna sua, Azadeh Masihzadeh, acusou o diretor de plagiar um documentário que ela produzira, chamado, em inglês, de All Winners, All Losers. (Sessões no Cine Grand Café, nesta sexta, 1º/7, às 16h55min, e no Espaço Bourbon Country, também nesta sexta, às 21h)
33) Vamos Consertar o Mundo (2022)
O filme dirigido pelo argentino Ariel Winograd, o mesmo de O Roubo do Século (2020), guarda algumas semelhanças com outra comédia recente do país vizinho — Granizo (2022). Aliás, por coincidência os dois filmes começam com uma tempestade. Novamente, temos como protagonista uma figura proeminente da televisão que vai sofrer um revés profissional e que tem assuntos ligados à paternidade a resolver. É o produtor David, encarnado pelo ótimo ator Leonardo Sbaraglia. Esse personagem comanda um programa de boa audiência, em que atores fingem ser pessoas comuns convidadas a solucionar conflitos domésticos ou de trabalho. Como Granizo, Vamos Consertar o Mundo acrescenta toques de tragédia e de melodrama. Sem avançar muito na sinopse, basta dizer que David terá de aprender a ser pai de Benito (Benjamín Otero, um talento mirim), um menino de nove anos — sendo que o filho pode nem ser seu. Uma vantagem em relação a Granizo é que Vamos Consertar o Mundo equilibra melhor os momentos de humor e de drama. Se serve como indicativo, ri mais com as desventuras de David do que com as do meteorologista Miguel e chorei quase convulsivamente na cena do abraço. (Netflix)