Em cartaz na Netflix, Não Olhe para Cima (Don't Look Up, 2021) é a comédia do negacionismo. No filme dirigido por Adam McKay, protagonizado por Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence e indicado a quatro Globos de Ouro, a ameaça apocalíptica que paira sobre a Terra tem a forma de um enorme cometa. Mas a enxurrada de memes e posts nas redes sociais deixou ainda mais evidente que o corpo celeste é uma alegoria da pandemia de covid-19.
Na verdade, Não Olhe para Cima nasceu como uma sátira sobre outro campo em que negacionistas vicejam, o das mudanças climáticas e do aquecimento global. McKay e o roteirista David Sirota escreveram o filme antes do surgimento do coronavírus. Depois que a doença se espalhou pelo mundo, voltaram à trama para torná-la mais absurda — e, paradoxalmente, mais próxima do que poderia ocorrer em caso de um iminente desastre astronômico (um letreiro diz que a obra se baseia em "possíveis acontecimentos verdadeiros"). Ao jornal Los Angeles Times, o cineasta admitiu a dificuldade de a ficção competir com a realidade, citando a entrevista coletiva em que Donald Trump, então presidente dos Estados Unidos, sugeriu uma injeção de desinfetante no combate ao vírus.
Concorrente nas categorias de melhor comédia ou musical, ator (DiCaprio), atriz (Lawrence) e roteiro no Globo de Ouro, a ser entregue em 9 de janeiro, Não Olhe para Cima é um típico filme de Adam McKay, 53 anos, que despontou assinando comédias como O Âncora (2004) e Quase Irmãos (2008). Depois, passou a abordar assuntos sérios e reais, como economia e política, mas sempre com uma pegada sarcástica e um ritmo simultaneamente febril e, na medida do possível, didático — em conversas com a imprensa, já assumiu o propósito de tentar atingir o público leigo, ainda que também jogue referências e ironias para uma parcela mais esclarecida da plateia. Assim, virou figura assídua no Oscar.
Em A Grande Aposta (2015), na companhia dos atores Christian Bale, Brad Pitt, Ryan Gosling e Steve Carell, narrou a história de um grupo de investidores de Wall Street que previu, com razoável antecedência, a crise do mercado imobiliário dos Estados Unidos deflagrada em 2008. As consequências foram catastróficas, abatendo economias no mundo todo. O título disputou cinco Oscar: melhor filme, direção, ator coadjuvante (Christian Bale), roteiro adaptado (conquistado por McKay e Charles Randolph) e edição.
No tragicômico Vice (2018), dedicou-se a biografar, mas de forma nada convencional — o que inclui momentos surrealistas e quebra da quarta parede —, o controverso Dick Cheney, vice-presidente dos EUA entre 2001 e 2009. Durante os dois mandatos de George W. Bush, Cheney foi um dos grandes artífices da Guerra ao Terror implementada após o 11 de Setembro. No Oscar, Vice recebeu oito indicações: melhor filme, direção, roteiro (do próprio McKay), ator (Christian Bale), atriz coadjuvante (Amy Adams), ator coadjuvante (Sam Rockwell), edição e maquiagem/cabelos (a única categoria premiada).
Nos últimos anos, o cineasta também está envolvido, como um dos produtores executivos e diretor do primeiro episódio, com a série Succession (2018-), que retrata com escárnio o processo de sucessão em um conglomerado de mídia e entretenimento. O seriado já ganhou nove Emmys.
Outra marca de McKay, o trabalho com um elenco estelar, mostra-se acentuado em Não Olhe para Cima — o que contribui para tornar ainda mais acessível este filme, bastante direto em sua narrativa e em sua crítica. DiCaprio e Lawrence interpretam dois astrônomos, Randall Mindy e Kate Dibiasky, empenhados em alertar a humanidade sobre a aproximação de um cometa que, dentro de seis meses, destruirá a Terra. Com o apoio de uma autoridade governamental, Teddy Oglethorpe (Rob Morgan, de Imperdoável e Luta por Justiça), eles conseguem uma audiência com a presidente dos EUA, Janie Orlean (Meryl Streep), e o chefe do gabinete, Jason Orlean (Jonah Hill), filho da mandatária — nepotismo rima com negacionismo. Mas o pior é que objetivos políticos são sobrepostos a informações científicas.
Então, por recomendação do namorado de Dibiasky, um jornalista encarnado por Himesh Patel (de Yesterday e Tenet), a dupla resolve botar a boca no trombone. A arena será um programa de TV apresentado pelos personagens de Cate Blanchett e Tyler Perry, incapazes de desarmar o olhar fútil e a positividade tóxica diante de uma notícia grave. Mas os espectadores também não colaboram: estão mais interessados no término do namoro entre uma cantora (Ariana Grande) e um rapper (Kid Cudi). Só dão atenção a Dibiasky quando ela dá um piti no ar, o que instantaneamente vira meme. Aqui, o humor não funciona como porta para acesso ao debate, mas como fuga da realidade. Daí o título do filme: se você não olhar para cima, se você não olhar para o cometa, se você não olhar para o problema, está tudo bem.
Os governantes, a mídia, a sociedade... Adam McKay também dispara contra os empresários. Mais especificamente, os bilionários gananciosos e excêntricos à la Mark Zuckerberg e Elon Musk. Em uma atuação tão sinistra quanto divertida, Mark Rylance (Oscar de ator coadjuvante por Ponte dos Espiões) interpreta Peter Isherwell, dono de um conglomerado de tecnologia, a BASH, que acaba de lançar um aplicativo que promete a vida "sem o estresse de viver". Ele também é um dos principais investidores da presidente Orlean, portanto, exercerá um peso importante na maneira como ela lidará com a emergência planetária.
E ainda há mais astros por aparecer — Timothée Chalamet, por exemplo, é Yule, um jovem skatista de família evangélica — e mais temas por abordar (o caráter corruptor da celebridade, a estupidez elevada ao heroísmo). É tanta gente e tanta ideia que, naturalmente, Não Olhe para Cima acaba se mostrando inchado na duração: são duas horas e 18 minutos. É um dos pontos negativos do filme, que, justamente por ser tão satírico, tão, digamos, farsesco, escorrega quando tenta retratar o lado humano de seus personagens. O melhor (ou o pior?) é acompanhar a luta inglória do conhecimento contra a credulidade. Randall, Dibiasky e Oglethorpe são como os últimos sobreviventes da humanidade submetida constantemente a lavagem cerebral proporcionada pela difusão da desinformação, pelo desprezo à inteligência, pela exaltação da frivolidade e pelos ataques à ciência.