As aventuras de Jack Bauer foram gestadas meses antes do 11 de Setembro, mas o personagem interpretado por Kiefer Sutherland na série 24 Horas — que comemora 20 anos de estreia no próximo sábado, 6 de novembro — acabou personificando o sentimento dos Estados Unidos após os atentados ao World Trade Center, em Nova York, e ao Pentágono, em Washington. Todos os 192 episódios das oito temporadas exibidas entre 2001 e 2010 estão em cartaz no Star+, a mais nova plataforma de streaming da Disney. (Em 2014, saiu a minissérie 24 Horas: Viva um Novo Dia, com 12 capítulos, mas esta não está disponivel.)
Joel Surnow e Robert Cochran foram quase clarividentes ao criarem 24 Horas. O primeiro capítulo, gravado em março de 2001, guarda uma terrível coincidência com o dia dos atentados: mostra um avião comercial sendo explodido por uma bomba. O seriado oferecia aos Estados Unidos a chance de evitar a tragédia. O formato da ação em tempo real traduzia a urgência na busca por Osama Bin Laden e outras cabeças da Al-Qaeda. A cada temporada, Jack Bauer precisava descobrir e interceptar uma grande ameaça: bomba nuclear, vírus letal, atentado ao presidente, gás venenoso...
Apesar da escalada do perigo e da aposta em reviravoltas na trama (aliás, sempre havia uma surpresa guardada para os epílogos das temporadas), havia uma certa previsibilidade: quem parecia do mal se revelava bonzinho, quem tinha cara de anjo escondia um lado perverso; dramas familiares influenciavam questões de segurança nacional, e vice-versa; as baterias dos celulares nunca acabavam; e, principalmente, sabíamos que tudo estaria resolvido no intervalo de 24 horas, provavelmente pelas mãos de Jack Bauer.
O cenário base era a sede, em Los Angeles, da CTU, uma fictícia unidade de combate ao terrorismo, que ficou celebrizada pelo toque de telefone (adotado por celulares mundo afora), pelo vocabulário recorrente de seus funcionários ("soquete", "criptografado", "PDA") e por ter o pior setor de RH possível — afinal, sempre havia um espião lá dentro. As ações, contudo, não ficavam restrita aos escritórios. E eram simultâneas: por vezes, a tela se dividia em até quatro quadros para mostrar onde estavam os personagens e o que estavam aprontando. Volta e meia aparecia o relógio digital que, ao assinalar a passagem dos segundos e ao ribombar, no antes e depois de cada intervalo, um som metálico e sinistro, contribuía para a tensão desgraçada que se respirava em cada episódio.
24 Horas bebeu da cultura do medo que marcou os governos de George W. Bush (de janeiro de 2001 a janeiro de 2009), mostrando muçulmanos, russos, chineses, africanos e até mexicanos como inimigos. Graças aos métodos empregados pelo protagonista — que incluía a tortura de seu próprio irmão —, foi acusada de validar a guerra ao terror deflagrada por Bush. Um levantamento da organização sem fins lucrativos Human Rights First contou, ao longo de 120 episódios, 67 cenas de choques elétricos, sufocamento com sacos plásticos, punhalada com bisturis aquecidos e outras formas de coerção, perpetradas não apenas pelos bandidos, mas também pelos mocinhos.
Por outro lado, Bauer sentia o peso moral do mantra "os fins justificam os meios", tornando-se, paulatinamente, um personagem trágico. Estava sempre em situações-limite: decidir entre a vida de um e a vida de milhares, entre a vida de um colega e a vida de um terrorista, entre sua própria vida e a de outros.
O seriado também batia nos estadunidenses, retratando conspirações na Casa Branca e maquinações político-econômicas para lucrar com a turbulência mundial — empresários da ultradireita, ligados à indústria petroleira do Oriente Médio, estiveram entre os vilões. Além disso, o fictício presidente David Palmer, vivido com honradez por Dennis Haysbert, pode ter contribuído para fixar no imaginário do país a ideia de eleger, em novembro de 2008, o primeiro presidente negro, Barack Obama — democrata como o mandatário de mentirinha.
Palmer foi um dos grandes coadjuvantes na trajetória de 24 Horas, que ganhou apenas uma vez o Emmy de melhor série dramática — em 2006, quando também levou os prêmios de ator (Kiefer Sutherland), direção (Jon Cassar), edição (David Latham) e música (Sean Callery).
Na galeria dos personagens inesquecíveis, estão a nerd Chloe O'Brian (interpretada por Mary Lynn Rajskub) e o dúbio Tony Almeida (Carlos Bernard), agentes da CTU, o hesitante Charles Logan (Gregory Itzin), que foi vice, presidente e ex, a perturbada primeira-dama Martha Logan (Jean Smart) e vilões como Habib Marwan (Arnold Vosloo), Victor Drazen (Dennis Hopper) e Cheng Zi (Tzi Ma), além de Allison Taylor, mandatária da Casa Branca que valeu a Cherry Jones um Emmy de atriz convidada.
Mas o show era mesmo de Jack Bauer, único personagem a aparecer em todos os episódios (e também no telefilme Redenção, que conecta a sexta e a sétima temporadas), dono de uma coleção de frases de efeito, como: "Eu matei duas pessoas desde a meia-noite. Não durmo há mais de 24 horas. Então, talvez você devesse ter um pouco mais de medo de mim". A minha preferida é uma da sexta temporada, por dimensionar a estatura, digamos, moral atingida pelo protagonista: "Senhor presidente, com todo o respeito, você me deve uma".