Às 9h05min de 11 de setembro de 2001, o presidente George W. Bush começou ler um conto para crianças da Escola Emma E. Brooker em Sarasota, na Flórida, quando seu chefe de Gabinete, Andrew Card, sussurrou em seu ouvido direito:
– Um segundo avião atingiu a outra torre. Os Estados Unidos estão sob ataque.
Os traços no rosto de Bush denotavam um misto de incredulidade e inação que, embora não fosse a reação mais esperada do comandante-em-chefe da nação mais poderosa do mundo, refletia muito do estupor de todos nós: de quem no asfalto do sul de Manhattan observava as torres gêmeas do World Trade Center em chamas, de quem assistia, a partir da margem oposta do Rio Hudson, à fumaça escura preencher o céu azul daquela manhã de terça-feira de final de verão e de quem via tudo pela TV em diferentes quadrantes do globo. Catástrofes em Nova York já tinham sido imaginadas por Hollywood (aqui, uma lista de 11 filmes sobre o tema, destacados pelo colega Ticiano Osório), mas só os mais pessimistas poderiam pensar que um dia elas ocorreriam no mundo real.
Os Estados Unidos emergiram da Segunda Guerra Mundial como líderes incontestáveis do sistema internacional. A partir do colapso da União Soviética (URSS) e com o fim da Guerra Fria, a posição de superpotência foi consolidada. Prenunciava-se uma pax americana, no que o pesquisador Francis Fukuyama, da Universidade de Harvard, definira no clássico artigo da Revista Foreign Affairs como “o fim da história”, a vitória definitiva da democracia liberal.
Ao perfurarem o aço e vidro do WTC e o concreto do Pentágono, os três aviões comerciais convertidos em mísseis expuseram a vulnerabilidade estadunidense
Ao perfurarem o aço e vidro do WTC e o concreto do Pentágono, os três aviões comerciais convertidos em mísseis expuseram a vulnerabilidade estadunidense. Uma quarta aeronave caiu em um descampado na Pensilvânia, quando provavelmente rumava para o Capitólio ou para a Casa Branca.
Ali, naquela manhã, uma ferida se abria no ventre da mais tradicional democracia do planeta, e mesmo 20 anos depois, lembrados neste final de semana, ela nunca cicatrizou. A mente criminosa de Osama bin Laden, líder da rede Al-Qaeda, planejou milimetricamente os ataques para que as imagens penetrassem no inconsciente coletivo mundial – e ali permanecessem para sempre, a ponto de quem viveu aquele dia lembrar até hoje exatamente onde estava e o que fazia quando as torres desabaram. Os atentados miraram aspectos simbólicos do poder dos EUA: o econômico, no WTC, e o militar, no Pentágono. Ao vivo. Em cores. Inaugurava-se a era do terror de massa, midiatizado e inesquecível.
A caçada a Bin Laden
Os 102 minutos entre o choque do primeiro avião, o voo 11 da American Airlines que havia decolado de Boston com destino a Los Angeles, contra a torre Norte e o desabamento do prédio (a segunda torre atingida, a Sul, caiu antes) integraram um hiato de tempo da era política em que os Estados Unidos tinham um presidente questionado e em busca de legitimidade doméstica e internacional. O republicano Bush havia vencido a eleição de novembro de 2000 no tapetão, após infinitas recontagens dos votos na Flórida e com resultado questionado na Justiça, em uma disputa que deixara os americanos por quase 30 dias sem saber quem seria seu novo presidente.
– Ou vocês estão conosco ou estão contra nós – bradou Bush, nas horas seguintes aos atentados, conclamando os aliados para a formação de uma grande coalizão internacional para revidar ao horror.
Em 7 de outubro, o primeiro míssil Tomahawk disparado do Oceano Índico caiu sobre o Afeganistão, para desentocar Bin Laden e derrubar do poder a milícia fundamentalista islâmica Talibã, que o protegera. A chamada Guerra ao Terror, no entanto, foi muito além das fronteiras da Ásia Central. Houve o que os pesquisadores chamam de securitização de temas que, anteriormente, não estavam ligados diretamente com o terrorismo: o conflito civil entre a guerrilha marxista Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o governo colombiano entrava nesse escopo, a suposta presença de células adormecidas do Hezbollah na Tríplice Fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai reassumia relevância e a chegada de levas de refugiados do Oriente Médio à Europa poderia trazer em seu seio extremistas infiltrados.
Em 11 de setembro de 2001, não apenas os EUA estavam sob ataque, como dissera Card a Bush, mas também uma forma de viver, o “American way of life” (e o nosso), sucumbiria, em parte, naquela manhã, junto com as mais de 1,8 milhão de toneladas de metal, cimento, vidro e escombros das torres. Depois que 19 sequestradores, a maioria sauditas, utilizaram facas de cozinha para sequestrar os quatro aviões, viajar nunca mais seria a mesma experiência: detectores de metais, scanner de corpo, e uma longa lista de itens proibidos a bordo tiraria um pouco do prazer do turismo em troca de uma pretensa sensação de segurança.
Novos ataques, de fato, foram evitados pelo ar. Mas, em terra e no subsolo, os extremistas seguiriam sua sina de terror do outro lado do Atlântico. Em 11 de março de 2004, o alvo seria a estação de Atocha e os trens de Madri (193 mortos). Em 7 de julho do ano seguinte, bombas explodiriam nos famosos ônibus vermelhos e em estações do metrô londrinas, matando 56 pessoas. Ambos ataques tinham as digitais da Al-Qaeda.
A queda de Saddam abriu a caixa de Pandora das diferentes facções políticas e religiosas no Iraque, e o território virou um imã de voluntários internacionais que deram origem a um grupo terrorista mais cruel
No front asiático, as bombas americanas perfuravam as montanhas de Tora-Bora, aniquilavam campos de treinamento da Al-Qaeda, conduziam a oposição, formada por combatentes da Aliança do Norte, rumo a Cabul, ao mesmo tempo em que o Talibã se recolhia a seus feudos no interior do país. Mas Bin Laden, a cabeça mais valiosa para a bandeja de Bush, não havia sido encontrado. Ele só seria morto em uma operação de forças especiais estadunidenses em 2011, sob governo do democrata Barack Obama, em uma mansão em Abbottabad, onde vivia havia pelo menos cinco anos, não muito distante de uma das principais academias militares paquistanesas.
Com o Talibã destronado do poder em Cabul e a Al-Qaeda neutralizada, era hora de outro slogan de efeito proclamado por Bush: “o eixo do mal”, formado supostamente por Irã, Coreia do Norte e Iraque, países que a Casa Branca elegeu como “terroristas”. Ele e todos os homens do presidente, formados por um perfil neoconservador, como o vice Dick Cheney, e o ministro da Defesa Donald Rumsfeld, estavam imbuídos de um dever quase missionário de terminar o trabalho iniciado por George H. Bush em 1991, na Guerra do Golfo, quando os EUA empurraram o Iraque para fora do Kuwait, mas não avançaram até Bagdá.
A invasão do Iraque sob o argumento de que Saddam possuía armas de destruição em massa nunca encontradas, em 2003, tensionou a relação entre os Estados Unidos e os tradicionais aliados europeus, como Alemanha e França. A queda de Saddam abriu a caixa de Pandora das diferentes facções políticas e religiosas no Iraque, e o território virou um imã de voluntários internacionais que deram origem a um grupo terrorista ainda mais cruel do que a própria Al-Qaeda: o Estado Islâmico (EI), que a partir das ruínas do país fundaram um arremedo de califado sob os ditames rígidos da sharia, a lei islâmica. Para conquistar enormes territórios, também na Síria, o EI imprimiu força brutal e horríveis decapitações de reféns.
Enquanto uma nova geração do terror surgia no Oriente Médio, simpatizantes da causa produziam novos ataques na Europa.
Paris viveu um 2015 sangrento, com o ataque à revista satírica Charlie Hebdo, em janeiro (12 mortos), e, em novembro, a série de atentados que começou no Stade de France, em Saint-Denis, espalhou-se por restaurantes e cafés da região da Place de la République, e terminou em um sequestro com assassinato de reféns na casa de espetáculos Bataclan (137 mortos no total). Bruxelas viu seu aeroporto explodir na ação de um homem-bomba em 22 de março de 2016. Em Nice, um homem avançou com o caminhão atropelando e matando 87 pessoas na orla mediterrânea, no 14 de julho de 2016. Cinco meses depois, em Berlim, o mesmo modus operandi: um veículo avança sobre a multidão em uma feira de Natal, matando 12 pessoas. O medo que os estadunidenses viveram em 11 de Setembro se converteria em pavor global: no metrô, nos ônibus, nas feiras, nos bares, nos restaurantes.
O Iraque ressuscitou ideologicamente o jihadismo internacional que havia sido bastante neutralizado no Afeganistão, após 2001.
O alto custo da guerra
A chamada Guerra ao Terror, que tinha o objetivo inicial eliminar os responsáveis pelos ataques de 11 de setembro de 2001, se desviara de seu objetivo inicial. Os EUA se meteram em dois atoleiros, Afeganistão e Iraque. Bin Laden só foi morto em 2011, e as guerras continuaram, cobrando vidas e muito dinheiro. Mais de 800 mil pessoas morreram, com um preço elevado pago por civis iraquianos e afegãos, a um custo de US$ 6,4 trilhões para os Estados Unidos, segundo um estudo publicado em 2019 pela Universidade de Brown. Só no Afeganistão, de onde os EUA se retiraram no último dia 30, o governo gastou US$ 2,2 trilhões – US$ 83 bilhões em treinamento e equipamentos para as forças armadas afegãs, as mesmas que, dias atrás, abandonaram os fuzis e correram quando o Talibã, vitaminado pela expectativa de saída das tropas americanas, dobrou a primeira esquina de Cabul.
Com a população estadunidense cansada de conflitos bélicos e leal ao slogan America First, o presidente Donald Trump colocou em marcha a partir de 2017 uma retração do intervencionismo militar, prometendo pôr fim às “guerras eternas”. Os EUA reduziram drasticamente a presença de suas forças no Iraque e, depois de um acordo com o Talibã, no ano passado, Joe Biden herdou do republicano a missão de organizar a saída do Afeganistão.
O aniversário de 20 anos dos atentados de 11 de Setembro seriam a data perfeita para capitalizar, internamente, os louros da retirada que dois terços dos americanos apoiavam. Mas, diante do avanço relâmpago do Talibã, que nunca morreu no interior do país, esperar a data foi ficando perigoso demais. O jeito foi sair às pressas, em uma debandada que teve cenas dramáticas de afegãos pendurados a trens de pouso de aeronaves prestes a decolar do aeroporto da capital. Para muitos, era melhor morrer despencando do céu do que pelas mãos dos barbudos, conhecidos pela tortura no antigo regime medieval, agora ressuscitado.
Do ponto de vista geopolítico, o enfraquecimento do Iraque no Oriente Médio abriu margem para o aumento do poder regional do Irã, ironicamente outro adversário americano, agora enfrentado pela Arábia Saudita, com apoio dos EUA. A Rússia, que se recuperou da década perdida dos anos 1990 e ressurgia como potência enquanto os EUA estavam ocupados com o terrorismo, exerce cada vez mais poder de influência na região. No Afeganistão, a roda da História girou e parou no mesmo lugar, como em 10 de setembro de 2001, com os mesmos homens contra os quais os EUA lutaram durante 20 anos de volta ao palácio presidencial.
O fato novo é a ascensão da China, o grande adversário geopolítico americano no século 21. Em 2001, quando os atentados ocorreram, Pequim estava apenas ingressando na Organização Mundial do Comércio (OMC), o que concedida ao mundo aquela falsa sensação de supremacia ideológica do liberalismo. Nem a democracia liberal hoje é garantia em lugar algum.
Vinte anos depois, Osama bin Laden, a mente por trás do horror em Nova York e Washington, está morto, os Estados Unidos travaram duas grandes guerras, no Afeganistão e no Iraque, tiveram sua imagem arranhada por escândalos de tortura, como na prisão de Abu Ghraib, e a manutenção da penitenciária de Guantánamo, em Cuba, onde ainda hoje suspeitos de terrorismo estão privados de proteções constitucionais. Mas o terrorismo não acabou, como mostraram os ataques do Isis-K contra o aeroporto de Cabul no último dia 26, fazendo os EUA ver, de novo, seus filhos voltarem para casa em caixões cobertos com a bandeira americana. A ameaça, entretanto, é mais difusa e descentralizada. Há duas ou três vezes mais jihadistas em todo o mundo do que em 2001, segundo estimativa de Elie Tenenbaum, autor do livro La Guerre de Vingt Ans: Djihadisme et Contre-terrorisme au XXIe Siècle (A Guerra de 20 anos: Jihadismo e Contraterrorismo no Século 21) e diretor do Centro de Estudos de Segurança do Instituto Francês de Relações Internacionais (Ifri) . Os efeitos dos episódios daquela manhã de terça-feira, 11 de setembro de 2001, ainda permanecem como vulto duas décadas depois. Mas os inimigos dos EUA agora são outros.