As vitrines de Cabul deram o primeiro sinal: menos de dois dias depois que o Talibã reassumiu o poder no Afeganistão, as imagens de mulheres com o rosto descoberto, maquiadas e sorridentes amanheceram pichadas. Dias depois, era possível ver homens, com rolo e tinta, cobrindo painéis em que elas apareciam em vestidos de noiva.
Na principal emissora de TV privada do país, a Tolo, as apresentadoras sumiram da tela. Há mais de duas semanas, os âncoras são apenas homens.
Uma jornalista que entrevistou um porta-voz do Talibã, durante a primeira entrevista coletiva do grupo, fugiu do país, e outra, Ziar Khan Yaad, foi espancada junto com o cinegrafista, enquanto fazia reportagem nas ruas da cidade.
Na emissora de TV pública, Radio Television Afghanistan, duas profissionais foram impedidas de trabalhar.
A mídia afegã, que nos últimos 20 anos foi ganhando cor e jeito semelhantes aos veículos de comunicação ocidentais, será, de certa forma, termômetro da situação dos direitos humanos e da liberdade de expressão da sociedade em geral e das mulheres em particular. A Tolo, por exemplo, chegou a exibir um desenhado animado chamado "Burka Avenger" ("A vingadora da Burca"), série paquistanesa na qual uma heroína combatia inimigos que queriam fechar uma escola para meninas, roteiro que emula, em certo sentido, a luta de Malala Yousafzai, a jovem mundialmente famosa que se tornou símbolo do direito das crianças e jovens ao estudo sob o Talibã.
Se esse tipo de programação será permitido a partir de agora, com o grupo extremista de volta ao palácio presidencial afegão, ninguém sabe. Na dúvida, a sociedade está em compasso de espera, cautelosa diante das palavras dos porta-vozes do Talibã que têm prometido moderação.
Entre 1996 e 2001, quando foi governo, o Talibã imprimiu um regime de terror, que teve as mulheres como principal alvo. A burca, vestimenta que cobre o corpo feminino da cabeça aos pés, era a face mais visível ao mundo dessa truculência.
Embora tradicional entre a etnia pashtun (que forma a maioria do Talibã), ela se tornou obrigatória para as mulheres em todo o país. Havia outras regras truculentas. Pessoas do sexo feminino eram proibidas de estudar, a educação deveria ser em casa. Para sair às ruas, mulheres precisavam ser acompanhadas de homens. Não podiam exercer cargos públicos, e crimes, como o adultério, segundo a lei islâmica, eram punidos com apedrejamento por vezes até a morte. Também não havia saúde pública para mulheres, entre outras violações aos direitos humanos.
Com o fim do regime do Talibã, a partir da guerra iniciada pelos Estados Unidos, em 2001, e a instauração de um governo pró-Ocidental, houve várias mudanças. A Casa Branca investiu US$ 780 milhões em programas de inclusão. Mulheres foram integradas às forças armadas, polícia e a outros aparatos estatais. Também estavam de volta às escolas e universidades, em cargos de gestão.
A fala mais detalhada até agora sobre o que virá veio da boca do ministro do Ensino Superior da milícia, Abdul Baqi Haqqani, em 29 de agosto. Ele disse que as mulheres poderão continuar estudando em universidades, porém em salas separadas dos homens. Aulas mistas serão proibidas. O mesmo deve ocorrer em escolas primárias e secundárias.
Algumas mulheres, no entanto, já denunciam que, em reuniões sobre o novo modelo das universidades do país, apenas professores homens participaram dos debates com o Talibã.
Sobre a participação na administração pública, um membro da comissão cultural do Talibã, Enamullah Samangani, afirmou a jornais paquistaneses:
- O Emirado Islâmico não quer que as mulheres sejam vítimas. Elas devem estar na estrutura de governo de acordo com a sharia.
Há diferentes tons de cinza na interpretação da lei islâmica. Embora alguns governos islâmicos apliquem formas menos restritivas, de forma geral, as mulheres são relegadas a segundo plano, com papéis subalternos aos homens na vida pública.
A respeito das vestimentas, o Talibã por enquanto não voltou a tornar a burca obrigatória. Passou a exigir o hijab, véu que cobre a cabeça e os ombros. Com o clima de incerteza e com combatentes talibãs patrulhando as ruas, muitas mulheres já passam a adotar de novo a burca e só saem acompanhadas por homens da família. Há desconfiança no ar.
Ativistas de direitos humanos afegãs que têm concedido entrevistas a emissoras internacionais se mostram dispostas a conversar com o Talibã e negociar direitos. Não se sabe se o Talibã aceitará.
A milícia precisa de reconhecimento internacional para se sustentar no poder. A maioria das embaixadas ocidentais fechou as portas - além de Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha e Índia. China, Rússia, Paquistão, Irã e Turquia permanecem com suas representações funcionando. Pequim e Moscou têm prometido relações amistosas, mas ainda não se manifestaram oficialmente sobre o reconhecimento do regime.
Essa legitimidade internacional virá em troca de respeito aos direitos humanos, acredita-se. Por isso, o Talibã tem mostrado esse verniz conciliador. Se o grupo fundamentalista mudou de fato, o mundo ainda desconhece. O que se sabe é que, nesses 20 anos, as mulheres e a sociedade afegã mudaram. Impor restrições, mesmo com armas, já não será tão fácil.