No papel, Hacks é uma série de comédia, gênero pelo qual a primeira temporada desta produção em cartaz na plataforma de streaming HBO Max concorre a 14 prêmios Emmy, incluindo melhor atriz (Jean Smart) e atriz coadjuvante (Hannah Eibinder). Mas o que sobressai em seus 10 episódios é a parte amarga. E é isso o que os torna mais saborosos.
Indicada em categorias como melhor série cômica, direção e roteiro, Hacks foi criada por Lucia Aniello (diretora de seis episódios), Paul W. Downs (no comando de dois e presente no elenco) e Jen Statsky. Aniello e Downs escreveram juntos, e ela dirigiu, o filme A Noite É Delas (2017), uma comédia policial ambientada em Miami e estrelada por Scarlett Johansson, Kate McKinnon e Zoe Kravitz. Statsky é egressa do time de roteiristas do programa Late Night with Jimmy Fallon e do seriado The Good Place. Os três já haviam trabalhado juntos na série Broad City (2014-2019), sobre duas amigas de 20 e poucos anos e temperamentos opostos que vivem desventuras em Nova York.
Em Hacks, Aniello, Downs e Statsky elegem como cenário outra cidade mítica dos Estados Unidos, Las Vegas, e novamente exploram os contrastes entre duas personagens femininas. Só que desta vez também há um conflito geracional, e a dupla se forma não por afinidade, mas por necessidade.
Interpretado por Paul W. Downs, o sarcástico agente de talentos Jimmy resolve juntar a fome com a vontade de comer. De um lado, ele tem Deborah Vance (Jean Smart), uma veterana comediante que ainda faz dinheiro — graças a muitas ações de marketing, algumas delas constrangedoras —, mas que está correndo o risco de perder seu palco cativo no fictício hotel e cassino Palmetto. O dono do estabelecimento, Marty (Christopher McDonald, um desses rostos que a gente já viu dezenas de vezes, mas nunca gravou o nome), diz que o show de Deborah está envelhecido e, de olho no público jovem que frequenta seus salões de jogos, pretende passar os horários nobres para o grupo vocal Pentatonix. A solução, entende Jimmy, é dar uma sacudida no seu repertório, contratando uma roteirista de 25 anos: Ava Daniels (Hannah Eibinder). Ela também já viveu dias melhores, mas agora enfrenta um cancelamento em Hollywood, consequência de chistes no Twitter sobre o filho gay de um senador.
O primeiro episódio tem uma sucessão de piadas, não raro maldosas e depreciativas, e as cenas tiram sarro ora da incontinência verbal de Ava, ora da fortuna ultrajante de Deborah — vide quando ela ordena que comprem um tablet para substituir o que, por desgostar de uma notícia, acabou de atirar na piscina, ou quando sua governanta lista todas as marcas de água disponíveis. Mas esse primeiro episódio também mostra que as personas assumidas pela comediante e pela roteirista são como fachadas que escondem uma solidão avassaladora (provocada tanto por terem dificuldade de lidar com as outras pessoas quanto por não se submeterem às regras do jogo social) e um mar de problemas familiares.
Assim como ocorre com um de seus rivais no Emmy, Ted Lasso, Hacks oscila entre momentos de humor e de drama, mas com uma amplitude e uma intensidade que exigem bem mais de seu elenco. As duas atrizes principais cumprem com excelência a missão.
De Jean Smart, que comemora 70 anos em 13 de setembro, já conhecíamos a versatilidade. Ganhou três Emmy por seriados de humor (dois por Frasier e um por Samantha Who?), concorreu duas vezes ao troféu de melhor atriz em drama por 24 Horas (encarnou a perturbada primeira-dama Martha Logan), disputou como coadjuvante por Fargo (2014) e Watchmen (2019) e está indicada pela minissérie Mare of Easttown (2021). A experiência contribuiu para compor uma Deborah Vance que sabe ser vilanesca, cruel e egoísta, mas que também sabe estender a mão, seja para acolher quem está chorando, seja para reagir por quem sofre em silêncio.
Filha de Laraine Newman, que integrou o elenco original do Saturday Night Live, entre 1975 e 1980, Hannah Eibinder, 26 anos, é praticamente uma estreante, mas sua Ava Daniels sugere um futuro brilhante. Em Hacks, ela consegue alternar segurança e fragilidade e combinar o palavrório afobado e uma certa deselegância física com a defesa de ideais nobres e uma certa integridade moral (a título de curiosidade, a atriz e a personagem são bissexuais).
Deborah e Ava vão viver uma situação típica das sitcoms, a dos estranhos que precisam aprender aos trancos e barracos a conviver um com o outro. Mas Hacks não faz as típicas concessões. Na verdade, a série é bastante crítica e mordaz quanto ao mundo da comédia — e, por extensão, do showbiz. Entram na pauta, por exemplo, a cultura do cancelamento, a tendência a um comportamento workaholic (evidenciado também pelo diretor de Operações da humorista de Las Vegas, Marcus, personagem que valeu uma indicação ao Emmy de ator coadjuvante para Carl Clemons-Hopkins) e o fardo emocional de ser filho de uma estrela — DJ, apelido de Deborah Junior (Kaitlin Olson, a Dee Reynolds de It's Always Sunny in Philadelphia), e sua mãe mantêm um relacionamento tóxico de mão dupla.
Mas o tema central é o tratamento dado ao gênero feminino na indústria do entretenimento. Variando entre a amargura, o escárnio e a raiva, Deborah e Ava expõem as engrenagens viciadas desse negócio que limita atrizes a determinados papéis. Rebelam-se contra estereótipos — como o da "mulher louca", usado para reduzir ou difamar as poderosas da ficção e da vida real — e combatem o assédio de cada dia, tão naturalizado que acaba lembrado como engraçado pelas próprias vítimas. Hacks tampouco obriga suas anti-heroínas a uma transformação. Sim, o atrito fará a comediante e a roteirista mudarem e amadurecerem, mas existe um respeito às idiossincrasias e às imperfeições das personagens. Há uma honestidade, ainda que temperada pelo humor, como aquela recomendada por Ava para o novo show de Deborah.