Se estivessem em uma festa, pessoas tão diferentes como Anitta, J.K. Rowling, Gabriela Pugliesi e Woody Allen poderiam sentar-se à mesa e conversar sobre uma experiência em comum: serem cancelados. O termo, nascido na era das redes sociais, descreve um indivíduo, marca ou empresa boicotado depois de agir de forma censurável – em geral, costumam ser erros que envolvem racismo, LGBTfobia ou machismo. No tribunal da internet, os juízes são de pouca misericórdia: o acusado tem o passado investigado, a reputação atacada e a defesa dispensada. A sentença? Humilhação e perda de dinheiro – em casos mais graves, desemprego e ostracismo. Parece algo distante, que só diz respeito a famosos, mas cuidado: o cancelado de amanhã pode ser você.
O cancelamento é um tipo de ataque à reputação que busca retirar o alvo dos holofotes do debate público e puni-lo. Todos os dias, em processo semelhante, cancela-se alguém flagrado em absurdo. O vacilo é compartilhado milhares de vezes – em geral, no Twitter –, mensagens de ódio são enviadas, e o cancelado, já humilhado, sofre consequências financeiras, com perda de contratos e patrocínios. Em casos raros, a desculpa ameniza os prejuízos, mas pode ser lida como mentira.
O cancelamento exige tomar o erro como se fosse o todo – não há equívocos pontuais. Na visão de canceladores, Anitta pulou de uma artista que não se posiciona politicamente a uma cantora que se aproveita do dinheiro de fãs gays. Não é à toa que o verbo “cancelar”, normalmente aplicado para romper um contrato de serviços, agora é aplicado a pessoas, como se indivíduos fossem, também, objetos a serem consumidos – ou rejeitados.
— Era uma possibilidade de ampliar a voz e a fala de grupos historicamente à margem e forçar ações, do ponto de vista político, para marcas ou figuras públicas mudarem. Mas, hoje, qualquer pessoa nas redes tem a identidade reduzida ao erro. A cultura do cancelamento, em si, não provoca pensamento crítico — opina a socióloga Suelen Aires Gonçalves, pesquisadora do Grupo de Pesquisa de Violência e Cidadania da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do coletivo negro Atinuké.
Como vírus, o cancelamento infecta pessoas relacionadas ao cancelado. Em outra situação de apuros, Anitta foi duramente criticada por dividir o palco com Nego do Borel, previamente cancelado por uma declaração preconceituosa contra a transexual Luísa Marilac.
É uma cultura extraordinariamente perigosa e fortemente autoritária, vinda geralmente de pessoas que não teriam outro protagonismo a não ser a denúncia do outro. As vítimas criam outras vítimas. Quem ganha com isso? O sujeito não tem voz nem defesa, é linchado.
MARIO CORSO
Psicanalista e escritor
Nem mesmo morrer livra do cancelamento: o ex-primeiro-ministro da Inglaterra Winston Churchill, visto como essencial para a vitória dos Aliados contra a Alemanha nazista, foi cancelado por declarações racistas e colonizadoras. Monteiro Lobato também, devido a suas obras consideradas discriminatórias à população negra.
— Sempre tem uma vítima e um herói do discurso. É uma cultura extraordinariamente perigosa e fortemente autoritária, vinda geralmente de pessoas que não teriam outro protagonismo a não ser a denúncia do outro. As vítimas criam outras vítimas. Quem ganha com isso? O sujeito não tem voz nem defesa, é linchado — diz o psicanalista e escritor Mario Corso.
Um caso notório
O cancelamento também acomete anônimos, e um dos casos mais emblemático é o da relações públicas norte-americana Justine Sacco. Em 2014, antes de embarcar em um voo para a África do Sul, ela tuitou: “Partindo para a África. Espero não pegar Aids. Brincadeirinha. Sou branca!”.
Ao aterrissar, 11 horas depois, sua vida mudara: uma enxurrada de mensagens de ódio mostravam que ela era assunto número 1 no Twitter. Acusada de racista, ela perdeu o emprego e entrou em depressão profunda. Sua história e de outros massacrados na internet é contada no livro "Humilhado – Como a Era da Internet Mudou o Julgamento Público" (Editora Record), escrito pelo inglês Jon Ronson.
Ao estudar os cancelamentos, o autor questiona se o Twitter se transformou em um tribunal clandestino e reflete que “quando humilhações são feitas como ataques de drones controlados remotamente, ninguém precisa pensar no quanto nosso poder coletivo pode ser cruel. Um floco de neve jamais precisa se sentir responsável pela avalanche”.
Via de regra, as análises sobre cultura do cancelamento costumam ser divididas em duas: de um lado, entende-se que a prática nasceu com viés positivo de buscar justiça social, mas perdeu o controle e se tornou autoritária. De outro, interpreta-se que é a consequência paga por se posicionar de forma prejudicial a minorias marginalizadas que, finalmente, são ouvidas. Para ambas as reflexões, é preciso voltar no tempo e entender a origem desse fenômeno que tem raízes em protestos da contracultura.
Um pouco de história
O fenômeno surgiu nos movimentos identitários da esquerda norte-americana ao longo das décadas de 1960 e 1970, explica Eduardo Wolf, doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). É quando lutas políticas começam a ser construídas em torno dos chamados “movimentos identitários” – formados por negros, feministas e LGBT+, entre outros.
Tais minorias políticas passam a ser ouvidas em uma crítica específica: o debate público é dominado por homens brancos, de classe média e europeus que opinam como se suas interpretações representassem a visão de todos.
A reivindicação passa a ser por mais diversidade em postos de chefia no mercado de trabalho, na docência de universidades, na política e na mídia. O pedido era legítimo, mas, na visão de Wolf, a implementação perdeu o prumo e se aproximou da conservadora censura típica das ditaduras, como se houvesse uma cartilha de ditos e não ditos.
— Cada vez mais se radicalizou a ideia de que os filtros para avaliar a cultura devem ser alinhados às propostas identitárias. Você entra em uma mentalidade de censura e persecutória. A cultura do cancelamento tem muito a ver com uma velha cultura de censura praticada em regimes autoritários e de democracia por questões comportamentais. Nas democracias, quem exercia a censura eram grupos mais conservadores. Mas há uma inversão: grupos da esquerda passam a buscar a exclusão de autores com base em critérios ditos progressistas — afirma Wolf, citando que “todos os grandes radicalismos costumam devorar seus próprios filhos”.
A reviravolta, de início, foi circunscrita às universidades, com marco zero nos protestos de 1987 na Universidade de Stanford, na Califórnia. O motivo de protestos foi a bibliografia da disciplina Western Culture (Cultura Ocidental), que exigia leituras apenas de autores europeus — a lista incluía Platão, Maquiavel, Bíblia e Shakespeare. Após muito debate, a disciplina foi extinta para dar lugar a outra, mais abrangente, chamada de Culture, Institutions, Values (Cultura, Instituições, Valores).
É uma nova mentalidade de caças às bruxas, assim como havia padres com seu index perseguindo livros e autores que desrespeitavam a moral e os bons costumes. Essas obsessões geram reações, como de que a esquerda é comunista e de que a teoria de gênero quer destruir a família.
EDUARDO WOLF
Doutor em Filosofia pela USP
Foi nos anos 1990 que o debate saiu das universidades, mas é nos anos 2000 que alguns termos caros a essa prática se popularizam de vez. Ganham força expressões como “safe space” (lugar livre de opressão) e gatilho (aviso de conteúdo capaz de provocar lembranças ruins a quem tem trauma), além de uma espécie de policiamento moral sobre como se referir a certos assuntos, diz Wolf.
— Universidades passaram a demitir muita gente, livros deixaram de ser publicados e isso virou um esporte nas redes sociais, com linchamentos virtuais. É uma nova mentalidade de caças às bruxas, assim como havia padres com seu index perseguindo livros e autores que desrespeitavam a moral e os bons costumes. Essas obsessões geram reações, como de que a esquerda é comunista e de que a teoria de gênero quer destruir a família. O resultado final da cultura do cancelamento é termos uma radicalização também de uma direita conservadora — avalia o filósofo.
O medo de uma ascensão totalitária também foi expresso em julho deste ano, no manifesto de 153 artistas e intelectuais da direita e da esquerda, incluindo J.K. Rowling, Noam Chomsky e Margaret Atwood. A carta, publicada na revista britânica Harper’s Magazine, pede o fim da “intolerância” do ativismo progressista e a defesa da liberdade de expressão. O texto cita que há “uma intolerância a pontos de vista opostos, uma moda de promover a vergonha e o ostracismo públicos e a tendência de reduzir questões políticas complexas a certezas morais cegas”.
Sobre legitimidade das críticas
Parte dos intelectuais, situada mais à esquerda, defende que o cancelamento é válido — ou que nem toda crítica nas redes sociais é cancelar. Sob essa ótica, comentários no Twitter representam reclamações latentes há séculos de populações marginalizadas que agora são ouvidas. O cancelamento, portanto, verbaliza tensões que estavam sob a superfície.
— Inúmeros setores da sociedade, além de serem oprimidos, não tinham espaço de fala e de escuta. As redes sociais criaram esse espaço. Mas violência de gênero e racismo são estruturais, não é um tuíte que será uma síntese de formulação da pessoa sobre o tema. A crítica e a exposição nas redes precisam estar em um processo de fala e de escuta — reflete a socióloga Suelen Aires Gonçalves.
Nem toda crítica é cancelamento, e apontar o preconceito de alguém no Twitter é uma forma de demarcar limites sobre o que é aceitável falar no espaço público, afirma Thiago Amparo, advogado e professor de Direitos Humanos na Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Não é saudável para uma democracia o cancelamento contínuo, ele diz, mas a liberdade de expressão tem limites.
Muitas vezes, o debate sobre cultura do cancelamento é colocado quando, na verdade, se pede maior pluralidade. Muitas vezes, o que se chama de cultura do cancelamento é um pedido de mais vozes serem escutadas no espaço público.
THIAGO AMPARO
Advogado e professor de Direitos Humanos na FGV-SP
— Se amanhã alguém faz um comentário nazista na TV e houver uma movimentação para essa pessoa perder a plataforma, isso é cancelamento ou estipular limite de quais são discursos aceitáveis? Nem todo limite que a gente tenha que impor em uma discussão pública é completamente autoritário. Muitas vezes, o debate sobre cultura do cancelamento é colocado quando, na verdade, se pede maior pluralidade. Muitas vezes, o que se chama de cultura do cancelamento é um pedido de mais vozes serem escutadas no espaço público e um questionamento de por que algumas pessoas estão no posto em que estão — afirma Amparo.
O professor da FGV também pontua que o cancelamento pode ser menos danoso do que se imagina quando se refere a personalidades em posição de poder. Famosos cancelados, como Anitta e Woody Allen, por exemplo, seguem ricos e ouvidos pela sociedade.
— Temos de levar em consideração as hierarquias de discurso. O “ruído incômodo” do debate público, como diz o (sociólogo conservador) Demétrio Magnoli, são as vozes ignoradas até agora. Quando havia piadas homofóbicas, as pessoas LGBT+ consideravam uma ofensa, só não estavam na TV falando isso. Precisamos separar o que é cancelamento e o que é quebra do monopólio da fala. Não vou chamar de cultura de cancelamento uma pessoa abusadora, denunciada por 15 pessoas e que perdeu o emprego se estamos em uma sociedade que não considera mais abuso algo legítimo. A cultura do cancelamento ofusca a questão de que deveríamos estar discutindo quais são os limites do discurso de ódio — diz.
Apesar de soar recente, o debate aflige filósofos há séculos: em meio à discordância, a melhor solução é dialogar ou desaparecer? Até que ponto é possível convencer o outro? Nas redes sociais, pesquisas indicam que posições extremadas triunfam sobre discussões moderadas. Antes de cancelar nas redes, talvez valha pensar: a crítica é válida? De fato vai ajudar a melhorar a sociedade?
E, por fim: e se fosse você?