Mare of Easttown, minissérie que está sendo exibida pela HBO e pelo HBO Go — o penúltimo dos sete capítulos vai ao ar neste domingo (23) —, traz uma Kate Winslet que nunca vimos, mas com o talento e a entrega de sempre.
Depois de ser heroína de Jane Austen (em Razão e Sensibilidade, 1995), mocinha do Titanic (1997), a versão jovem de uma escritora com Alzheimer (Iris, 2001), a namorada que apaga o ex da memória (Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, 2004), uma mãe adúltera (Pecados Íntimos, 2006), uma ex-carcereira de Auschwitz (O Leitor, 2008) e a chefe de marketing da Apple (Steve Jobs, 2015), todos papéis pelos quais concorreu ao Oscar; depois de ser uma jovem dona de casa dos anos 1950 (Foi Apenas um Sonho, 2008), uma rica corretora cujo filho bateu no filho de outro casal (O Deus da Carnificina, 2011) e uma mulher deprimida que se envolve com um presidiário em fuga (Refém de uma Paixão, 2013), personagens que também valeram indicações a prêmios como o Globo de Ouro; depois de estrelar comédias românticas (O Amor Não Tira Férias), franquias juvenis (Divergente), ficções apocalípticas (Contágio) e adaptações de peças de teatro (Contos Proibidos do Marquês de Sade, Em Busca da Terra do Nunca); depois disso tudo, a atriz inglesa de 45 anos vive sua primeira detetive.
A minissérie foi criada e escrita por Brad Ingelsby, roteirista dos filmes Noite Sem Fim (2015), com Liam Neeson, e O Caminho de Volta (2020), com Ben Affleck. A direção é assinada por Craig Zobel, do premiado thriller Obediência (Compliance, 2012).
Em entrevista à Vogue, Kate Winslet enumerou motivos para ter aceitado o papel. Estava entusiasmada em voltar a trabalhar com a HBO, onde estrelou a excelente Mildred Pierce (2011), ganhadora de cinco troféus Emmy, incluindo melhor atriz e ator coadjuvante (Guy Pearce, seu colega de elenco em Mare of Easttown). Definiu o roteiro como "uma espécie de sonho para uma atriz de meia-idade".
— E o texto era totalmente real e maravilhoso — continuou Kate. — Eu consegui me sentir dizendo aquelas palavras. Isso é sempre um parâmetro para mim: falo trechos em voz alta quando estou lendo um script, interpreto. Digo para um de meus filhos: "Vem cá e lê rapidinho esta cena comigo". E assim vou tendo a sensação de se pode ser bom. Com a Mare, eu tive essa sensação imediatamente.
Na mesma conversa, a atriz disse ter ficado fascinada com o "quem foi" desta minissérie policial, mas ressaltou que "não é só a história de um crime":
— Na verdade, é mais sobre a comunidade, sobre misericórdia, compaixão e tristeza, e sobre como as pessoas reais vivem, lidam com coisas reais e como essas coisas reais nem sempre são felizes, sabe? Podem ser muito desafiadoras. As dinâmicas familiares podem ir mudando em razão de algo que aconteceu no passado ou que está acontecendo no presente.
De fato, em Mare of Easttown o crime descoberto ao final do primeiro episódio é chocante e misterioso, mas serve fundamentalmente como um catalisador dos dramas pessoais e familiares em Easttown, cidade do Estado da Pensilvânia, nos Estados Unidos, com 10 mil habitantes. A morte traz à tona relações e segredos guardados em vida — uma imagem reforçada pela ambientação numa estação fria, que obriga os personagens a se esconderem atrás de casacos, mantas e gorros.
E todos os personagens têm o que ocultar ou algo do que não gostam de falar. A detetive Mare Sheehan, por exemplo, viveu um episódio traumático na família. Sua amiga Beth (Chinasa Ogbuagu) já não sabe como lidar com o irmão viciado em drogas. O diácono Mark Burton (James McArdle) foi transferido de paróquia em circunstâncias mal esclarecidas.
Os tipos criados pelo roteirista Ingelsby são muito críveis, e o diretor Zobel dá espaço para o desenvolvimento de um elenco que inclui David Denman (o eterno noivo de Pam no seriado The Office), Julianne Nicholson (uma das três irmãs em Álbum de Família) e Evan Peters (das franquias American Horror Story e X-Men). A fotografia é naturalista, a edição, cadenciada, e a direção de arte também é crucial, desde as casas de gente como a gente até o figurino desgastado.
Toda a técnica está a serviço das angústias e dos dilemas enfrentados por uma série de personagens femininas que têm um traço em comum: são mães. Entre elas, além da própria Mare, estão Dawn (interpretada por Enid Graham), que há um ano amarga o desaparecimento da filha adolescente, Katie Bailey, e Erin (Cailee Spaeny, protagonista de Jovens Bruxas: Nova Irmandade), que, aos 16 anos, luta para que o ex-namorado ajude a pagar a cirurgia do bebê deles. Há também uma mulher que lida com a infidelidade do marido e uma dependente química em recuperação que promete busca na Justiça a guarda do filho.
No meio desse sufoco emocional, no meio de uma investigação efetivamente intrigante, Mare of Easttown oferece momentos de insuspeitado alívio cômico. Começa com um policial que não pode ver sangue, inclui muitas das cenas com Evan Peters e tem como ápice a mãe de Mare, Helen, encarnada pela veterana Jean Smart, vista recentemente em outra minissérie da HBO, Watchmen, e ganhadora de três Emmy por seriados de humor (dois por Frasier e um por Samantha Who?).
Kate Winslet circula por essas duas ou três dezenas de personagens demonstrando sua versatilidade de registro — podemos sofrer com ela, podemos rir com ela — e sua capacidade de desaparecer dentro de um papel.
Sim, sabemos que ali está uma atriz indicada sete vezes ao Oscar, uma atriz que desde o final dos anos 1990 virou alvo dos tabloides britânicos e estadunidenses (ora por conta de seu peso, ora por conta de sua vida amorosa), uma atriz com 30 anos de carreira completados em 2021. Mas logo de cara acreditamos em Mare Sheehan como uma pessoa de carne e osso, com suas convicções, suas manias, seus desejos, suas falhas, seus esqueletos no armário. Estamos juntos nas pequenas alegrias, estamos juntos nas mancadas vergonhosas, estamos juntos naquela sequência tensa, aflitiva, surpreendente e ofegante que fecha o quinto episódio e que reforça as palavras da protagonista: não é só a história de um crime.