Os idiomas mudam, mas as minisséries da Netflix baseadas em livros de Harlan Coben ou criadas pelo romancista estadunidense falam sempre a mesma língua. Depois das inglesas Safe (2018) e Não Fale com Estranhos (2020) e da polonesa Silêncio na Floresta (2020), chegou a vez da espanhola O Inocente (e em breve, dentro do contrato de 14 adaptações firmado há três anos, veremos mais uma britânica, Fique Comigo, e uma francesa, Desaparecido para Sempre). Novamente, há um enigma policial que conecta a vida de vários personagens, quase todos com alguns esqueletos no armário. E as tramas que correm em paralelo vão, por um lado, preenchendo o quebra-cabeças, por outro, reprisando os temas dessas obras: o peso do passado e o preço dos segredos.
Ambientada sobretudo em Barcelona, mas com passagens por Madri e Marbella (cidade turística na região de Málaga), O Inocente é uma versão do romance homônimo de Coben. Foi adaptado por Oriol Paulo, diretor e roteirista dos elogiados filmes de mistério criminal Um Contratempo (2016) e Durante a Tormenta (2018). Ele assina a adaptação com Pablo Vallejo e dirige os oito episódios. O personagem do título é encarnado por um velho conhecido dos dois: Mario Casas, ator de Um Contratempo e de No Matarás (2020, coescrito por Vallejo).
Casas interpreta Mateo Vidal, o Mat, um jovem estudante de Direito que, em meio a uma briga na saída de um bar, mata acidentalmente um rapaz. Condenado, ele passa quatro anos na prisão. Com a ajuda do irmão, que o torna sócio em um escritório de advocacia, reconstrói sua vida e reencontra a mulher que havia conhecido em uma festa após ser libertado, Olivia (Aura Garrido). Os dois se casam e estão à procura de uma nova casa para morarem com o bebê que estão esperando, mas um belo dia ele recebe uma mensagem perturbadora enviada pelo celular dela.
Isso tudo é contado em poucos minutos. O ritmo trepidante é um dos pontos altos nos primeiros episódios da minissérie. Outro é a forma: cada capítulo começa com foco em um personagem, que, em uma narração em off dirigida a ele próprio ("Teu nome é Mateo Vidal"...), rememora sua história de vida e os passos que o levaram até a situação na qual se encontra. Ou seja, O Inocente trabalha com idas e vindas no tempo e com diferentes pontos de vista — a certa altura, Mat praticamente some de cena. Com essa estratégia narrativa, o diretor Oriol Paulo maneja a curiosidade do espectador: é impossível dormir sem pelo menos tentar seguir adiante, já que a todo instante somos atiçados por uma nova revelação ou por uma nova conexão.
Afinal, qual é a relação entre Mat e uma freira (Juana Acosta) que se suicidou em pleno orfanato? Por que o corpo dessa religiosa atrai a atenção de um investigador da Unidade de Delitos Especiais (UDE), Teo Aguilar (José Coronado)? O que Olivia esconde quando se afasta para falar ao telefone ou se tranca no banheiro? Quem é Anibal?
A cada ponta amarrada, surge outro mistério. Aos poucos, como acontece com a detetive Lorena Ortiz (Alexandra Jiménez, da comédia Toc Toc) — ela também assombrada pelo passado -, vamos percebendo o tamanho do quadro. Só que, quando começamos a enxergar o todo, a imagem já não é tão vistosa quanto parecia. E AQUI CONVÉM AVISAR QUE PODE HAVER SPOILERS OS PRÓXIMOS PARÁGRAFOS.
Se como em Não Fale com Estranhos os ganchos ao final de cada episódio são um convite irrecusável para assistir ao próximo, a exemplo do que ocorreu em Silêncio na Floresta algumas soluções são implausíveis, como se lançadas apenas com o intuito de reembaralhar as coisas e nos desviar de uma rota aparentemente lógica. Isso vale especialmente para o sétimo episódio, que transforma o status de um/uma personagem: de vítima a vilão/vilã. Falando nisso, algumas cenas fazem lembrar daqueles filmes de James Bond em que o bandido tem a faca e o queijo na mão, mas se enrola tanto que deixa o mocinho escapar.
ÚLTIMO AVISO SOBRE SPOILERS.
Em outros momentos, O Inocente facilita demais as coisas, se omitindo de tecer uma trama mais política, de mirar um alvo mais alto. É conveniente demais que a "figura poderosa" envolvida na morte de uma prostituta seja um policial federal, e não um grande empresário, um deputado, um governante. Pior é que, nas cenas transcorridas no universo de um bordel de Marbella, a direção de fotografia insista no chamado male gaze, o olhar masculino que objetifica sexualmente as personagens femininas.
A descoberta final, por sua vez, tem três problemas: primeiro, pôde ser antevista bem cedo pelo público atento a convenções do gênero; segundo, requer bastante suspensão da descrença quanto à habilidade da pessoa em questão para arquitetar uma vingança tão rocambolesca e para praticar o os atos de maldade; e terceiro, coloca em segundo plano o terrível caso de exploração sexual de menores desvendado anteriormente. FIM DOS SPOILERS.
No entanto, entre mortos e feridos O Inocente salva-se pela engenhosidade do roteiro, pela intensidade das atuações (sobretudo a de Coronado e a da argentina Martina Gusmán, protagonista do filme Leonera, que interpreta Kimmy, uma das dançarinas da boate) e pela capacidade de, aqui e ali, nos fazer refletir sobre os papéis que escolhemos interpretar e o custo emocional para mantê-los, sobre como os fantasmas e os monstros que habitam em nós nunca vão embora por completo — estão sempre à espreita —, sobre como a morte rege a vida.