Eis um título nacional melhor do que o original: The Stranger (O Estranho ou, no caso,
A Estranha) foi rebatizado por aqui como Não Fale com Estranhos. Tanto a minissérie, que estreou recentemente na Netflix, quanto o romance policial escrito pelo americano Harlan Coben, um best-seller do gênero.
O que torna o título brasileiro mais interessante é que a história subverte o sentido do mantra que pais e mães, geração após geração, repassam aos filhos. Entre os riscos de uma criança falar com um estranho, está a possibilidade de ele colher alguma informação que possa usar em prejuízo da família – como detalhes da rotina doméstica. Coben troca a mão: o perigo de o advogado Adam Price (interpretado por Richard Armitage) conversar com uma estranha – a jovem de boné encarnada por Hannah John-Kamen – é que ela sabe de algo que ele desconhece.
Trata-se de um segredo que estaria sendo escondido pela esposa de Adam, a professora Corrine (Dervla Kirwan), mãe de seus dois filhos adolescentes: dois anos atrás, quando o casamento não ia tão bem, ela teria forjado uma gravidez. Adam enxota a moça misteriosa que o abordara no intervalo de um jogo do time de futebol de um dos garotos, na fictícia cidade de Cedarfield, na Inglaterra, mas o estrago já está feito. A semente da dúvida e da desconfiança foi plantada. Agora Adam vai investigar o passado.
Se o parágrafo anterior pareceu conter muitos spoilers, não se preocupe: isso é só a ponta do iceberg que começa a ser revelado no primeiro dos oito episódios de Não Fale com Estranhos. Quem assistiu à minissérie Safe, outra produção da Netflix baseada em uma obra de Harlan Coben (e que gerou um contrato para mais um bocado de adaptações), vai identificar de cara pontos em comum: há um enigma para a polícia, a vida idílica de famílias inglesas oculta alguns esqueletos no armário, e um emaranhado de tramas corre em paralelo. Parte do fascínio – e o motivo pelo qual os capítulos tendem a ser devorados em um par de noites – consiste em acompanhar se essas pontas serão amarradas. O que um adolescente encontrado nu e machucado após uma rave na floresta tem a ver com um ex-detetive (o ótimo Stephen Rea) que se recusa a vender sua casa para a construção de um condomínio? Como a doença de uma colega do filho mais velho de Adam se encaixa na história? Que outros segredos a garota do boné guarda? E qual o seu objetivo em compartilhá-los?
Dirigidas por Daniel O'Hara (que trabalhara em Safe) e Hannah Quinn, as peças desse tabuleiro movem-se harmoniosamente, graças a um elenco homogêneo, em que se destacam, além de Rea, Siobhan Finneran (como a policial Johanna) e Shaun Dooley (como Tripp, vizinho de Adam). Os personagens confrontam uns aos outros, e a montagem e a trilha sonora acentuam a tensão.
Algumas soluções podem ser muito fantasiosas, mas Não Fale com Estranhos ancora-se em sólidas verdades. A principal delas é sobre o peso da mentira na sociedade. Nossas relações são baseadas em fingimentos, omissões, hipocrisias e outros tipos de falsidade – é o que nos impede de sermos isolados do convívio familiar e social ou de sairmos no tapa por excesso de sinceridade. Quando um estranho vem e nos puxa o tapete que tramamos com enganos e autoenganos, somos forçados a ver as coisas como elas realmente são. Praticamente todos os personagens escondem algo, o que, por vezes, resulta em consequências desastrosas.
Mas por que confiamos mais em um estranho do que naqueles que nos cercam? Por que Adam Price dá tanto ouvido à moça do boné? Porque, no fundo, somos cientes das nossas pequenas e grandes mentiras, sabemos que podemos ser rastreados. Como Harlan Coben mostra, deixamos, para o bem ou para o mal, uma série de pegadas digitais na selva urbana em que vivemos. Das compras no cartão de crédito aos celulares com aplicativos de geolocalização, passando pela cultura de registrar o cotidiano em vídeos, tudo contribuirá para o desenvolvimento e o desvendamento dos mistérios.