A vida do personagem biografado no filme Bob Marley: One Love (2024) foi curta — ele morreu quando tinha apenas 36 anos, em 1981 —, mas intensa. Cresceu em Trenchtown, a maior favela de Kingston, capital da Jamaica. Sofreu rejeição por ter um tom de pele mais claro, herança do pai, que era branco e abandonou a família. Tornou-se o grande nome do reggae, primeiro à frente dos Wailers e depois em carreira solo, cantando em defesa dos pobres e dos oprimidos, da paz e da liberdade e denunciando o racismo e o colonialismo. Virou ícone do rastafári, movimento religioso que considera Haile Selassie (1892-1975), o último imperador da Etiópia, como Deus encarnado, prega o uso espiritual da maconha e proíbe cortar os cabelos — os dreadlocks são tanto um tributo de fé quanto uma conexão com a África. Sobreviveu a um atentado a tiros: a única bala a atingi-lo atravessou seu peito e foi parar no braço esquerdo. Promoveu um show gratuito no qual chamou ao palco o então primeiro-ministro do país caribenho e o líder da oposição, para que dessem as mãos e pusessem fim à tensão política que quase levou os jamaicanos à guerra civil. Teve 11 filhos com sete mulheres diferentes, mas só uma esposa, Rita (que já era mãe de uma menina antes do casamento). Foi diagnosticado com um tipo raro de câncer de pele — a causa de sua morte precoce —, mas recusou o tratamento médico mais adequado, a amputação do dedão de um pé, por conta de suas crenças (o corpo é sagrado e não pode ser modificado) e também por medo de que o procedimento cirúrgico dificultasse sua dança.
Como acomodar todos esses episódios e todas essas facetas em um filme só? A dúvida vira espanto diante da duração de One Love, que nesta terça-feira (3) entra no menu da Netflix. Ao contrário dos recentes Elvis (2022), Oppenheimer (2023) e Napoleão (2023), esta é uma cinebiografia que sequer tem duas horas. São 107 minutos, quase 40 a menos do que o título anterior do seu diretor, King Richard: Criando Campeãs (2021), no qual Reinaldo Marcus Green narrou a história do pai das tenistas Venus Williams e Serena Williams. O personagem valeu o Oscar de melhor ator para Will Smith, e o longa-metragem foi indicado em outras quatro categorias, incluindo a principal.
Para evitar um sobrevoo muito rápido sobre os momentos mais importantes da vida e da carreira de Bob Marley, uma solução seria focar em uma determinada época ou característica. O roteiro escrito por Green, Zach Baylin (concorrente ao Oscar por King Richard), Terence Winter (ganhador de quatro prêmios Emmy pela série Família Soprano) e Frank E. Flowers até que tenta fazer isso. Concentra-se no período que vai de 1976 a 1980, sem chegar a retratar a morte do artista. Mas a cena de abertura mostra o protagonista ainda criança, ouvindo um conselho, ou um alerta, ou uma profecia: "Tome cuidado nesta estrada". Serve como senha para o espectador: interessam ao filme os desafios impostos ou voluntariamente assumidos por Bob Marley, interpretado na fase adulta por Kingsley Ben-Adir, ator que já havia encarnado duas figuras históricas — o ativista Malcolm X, em Uma Noite em Miami (2020), e o presidente Barack Obama, na minissérie The Comey Rule (2020).
Na transição da infância para a maturidade, One Love lança mão de um recurso nada criativo: uma série de letreiros dá conta da ascensão de Marley e da turbulência na Jamaica. Independente do Reino Unido desde 1962, o país estava no limiar de uma guerra civil por causa das eleições de 1976, que opunham o então primeiro-ministro Michael Manley, de um partido de esquerda, e Edward Seaga, de direita (ambos brancos, vale ressaltar, apesar de 92% da população local ser formada por negros e pardos). Marley tem a ideia de fazer um show gratuito em nome da paz, mas o evento acaba associado à candidatura de Manley, o que motiva a invasão e o tiroteio na casa do cantor.
Esse início sugere uma cinebiografia politizada, dedicada ao discurso pacifista do ídolo e a sua relação com os problemas sociais jamaicanos, aí incluído o preconceito aos rastafáris. Mas One Love nunca se torna o filme que prometia ser. Os dois líderes políticos sequer são personagens, só aparecem em imagens de arquivo. Jamais acompanhamos os bastidores do tal show no qual Marley promoveu o encontro entre Manley e Seaga, visto apenas já nos créditos de encerramento.
One Love ensaia fazer um recorte singular, mas acaba querendo acomodar todos os episódios e todas as facetas. A suposta narrativa central seguidamente cede espaço a elementos convencionais, como os flashbacks que reconstituem o começo da trajetória musical, a cenas que só estão lá para constar, como os jogos de futebol. O lado mulherengo também é abordado, mas de forma bastante tímida — provavelmente porque entre os produtores há familiares do artista, como Cedella, sua mãe, Rita, sua viúva (vivida por Lashana Lynch, de 007: Sem Tempo para Morrer e A Mulher Rei), e seu filho mais famoso, Ziggy Marley, que seguiu os passos do pai.
A superficialidade é realçada pela quantidade de trechos musicais. A certa altura, One Love parece menos um filme do que uma coleção de videoclipes — verdade que muito bem orquestrados pelo diretor de fotografia Robert Elswit (oscarizado por Sangue Negro e indicado por Boa Noite e Boa Sorte) e pela montadora Pamela Martin (que disputou a estatueta dourada por O Vencedor e King Richard) e com letras que sublinham a trama ou até funcionam como material narrativo. Assistimos a reencenações de shows e gravações e ouvimos, por exemplo, Simmer Down, um vibrante ska que foi o primeiro sucesso dos então chamados Wailing Wailers, Jamming, I Shot the Sheriff, No Woman, No Cry e Redemption Song.
Na maioria das vezes, a voz é do próprio Bob Marley. Mas Kingsley Ben-Adir, que canta em alguns momentos mais acústicos, mais íntimos — como na linda cena em que o protagonista exibe Redemption Song para Rita —, é um nome que, com um filme melhor, poderia surgir nas premiações de 2025. Tem carisma, trabalha muito bem a fisicalidade do personagem e esmerou-se na prosódia de Marley — por vezes cômica, em outras, incisiva. Uma pena que One Love tenha pouco a dizer.
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