Sinceramente, eu gostaria que você tivesse visto Elvis (2022) no cinema, em vez de ter esperado para assistir na HBO Max, onde entrou em cartaz nesta sexta-feira (2). Porque o filme dirigido por Baz Luhrmann e estrelado por Austin Butler e Tom Hanks é um espetáculo que pede a tela grande e o som alto, que pede a escuridão da sala e a imersão da plateia, como podem testemunhar os espectadores que ajudaram a encorpar a bilheteria da cinebiografia do chamado Rei do Rock and Roll — foram US$ 277,4 milhões arrecadados, a 11ª da temporada e a segunda maior do gênero, ainda que muito abaixo dos US$ 910,8 milhões de Bohemian Rhapsody (2018).
Mas se você não viu, eu conto aqui porque já deveria ter visto este que é um dos melhores filmes de 2022, porque a experiência tende a não ser a mesma em casa e qual é a única vantagem de assistir a Elvis no streaming.
Perto do final (não se preocupe, não haverá muitos spoilers), o protagonista interpretado por Austin Butler diz:
— Eu vou fazer 40 anos. Ninguém vai se lembrar de mim. Nunca fiz nada duradouro, nunca fiz um filme clássico.
A declaração, além de traduzir a fragilidade emocional de um dos grandes ícones do século 20, contém um pouco de inesperada modéstia e outro de acertada autocrítica. Elvis Presley (1935-1977) emplacou 18 canções no número 1 da parada publicada pela revista Billboard, incluindo Heartbreak Hotel, Don't Be Cruel, Hound Dog, Love Me Tender, All Shook Up, Jailhouse Rock, Stuck on You, Now or Never, Are You Lonesome Tonight e Suspicious Minds. É o terceiro artista que mais vendeu discos, atrás apenas dos Beatles e de Michael Jackson. Seu especial de TV Aloha From Hawaii, realizado em 1973, suplantou a audiência da chegada do homem à Lua, em 1969. Foi e continua sendo reverenciado e imitado (vide filmes como 3000 Milhas para o Inferno, de 2001, e O Último Elvis, de 2013).
E se é verdade que nenhum de seus 31 filmes como ator — entre eles, Ama-me com Ternura (1956), Prisioneiro do Rock and Roll (1957), Balada Sangrenta (1958), Feitiço Havaiano (1961) e O Seresteiro de Acapulco (1963) — tornou-se um clássico ou mesmo um sucesso de público, é possível apostar em indicações ao Oscar de 2023 para Elvis.
Como qualquer cinebiografia, Elvis faz um recorte na vida do protagonista. Os biógrafos, os fãs e até os detratores do cantor percebem lacunas. Podem reclamar que a esposa de Elvis, Priscilla Presley (encarnada por Olivia DeJonge, a menina Becca do terror A Visita e a Caitlin da minissérie The Staircase), aparece menos do que o esperado, pelo menos na fase mais jovem— e que não se fala do namoro ter começado quando ela tinha 14 anos e ele, 24! Talvez gastem horas discutindo no que Luhrmann errou ou exagerou. E certamente vão sentir falta de profundidade na abordagem do debate sobre apropriação cultural de uma música inventada por negros, o rock, por artistas brancos.
Sim, a trama dá crédito e holofote a nomes como Big Mama Thornton (vivida por Shonka Dukureh, encontrada morte em julho, aos 44 anos), intérprete original de Hound Dog, Sister Rosetta Tharpe (a cantora Yola), pioneira da guitarra elétrica, e Little Richard (o modelo Alton Mason), compositor de Tutti Frutti, e mostra a amizade que Elvis tinha com o lendário guitarrista de blues B.B. King (Kelvin Harrison Jr.) e sua admiração por Fats Domino, a quem, durante uma entrevista coletiva em Las Vegas, apontou como o verdadeiro rei do rock and roll. Mas o filme não fala quase nada sobre como os músicos negros se sentiam a respeito de Elvis.
Como as melhores cinebiografias, Elvis coloca a vida do protagonista sob uma visão muito pessoal — personalíssima, neste caso. Diretor de Vem Dançar Comigo (1992), Romeu+Julieta (1996), Moulin Rouge! (2001), Austrália (2008) e O Grande Gatsby (2013), o australiano Baz Luhrmann, 60 anos no próximo dia 17, é um ferrenho opositor do lema "menos é mais". No seu cinema, cada cena deve ser um espetáculo para os olhos e os ouvidos, com o máximo de movimentos de câmera e cortes de edição. Também é um fervoroso adepto da estética kitsch, permitindo-se todo tipo de exagero e de mistura de referências. Daí que o trágico romance shakespeariano pode ser transposto da Verona renascentista para a contemporânea e ensolarada Califórnia, daí que canções pop das décadas de 1970, 1980 e 1990 podem ser fundidas em um cabaré parisiense da virada de 1899 para 1900.
O Elvis de Luhrmann é um frenesi, um filme para ser visto em pé, um convite à dança. Sua forma — uma explosão de cores e de sons, uma celebração da voz e do corpo de Elvis Aron Presley — e seu ritmo (por vezes deliciosamente caótico) refletem o espírito irrequieto do personagem, sua energia, sua extravagância, seu requebro sedutor e suas várias transformações. Com duas horas e 40 minutos, o filme cobre praticamente toda a trajetória do biografado. Desde a infância na cidade natal, em Tupelo, no Mississippi, onde ele descobriu sua conexão com a música negra e seu prazer em ser adorado, até a morte (por um ataque cardíaco no qual pesaram o vício em remédios barbitúricos e o excesso de gordura e colesterol), no dia 16 de agosto de 1977, na mansão Graceland, em Memphis, no Tennessee. No meio, o roteiro escrito por Luhrmann, Sam Bromell, Jeremy Doner e Craig Pearce e a diretora de fotografia Mandy Walker focam em fases como a do terno dourado, a da roupa cor de rosa, a do uniforme militar, a do traje de couro preto (em seu retorno triunfante, registrado no especial de TV chamado '68 Comeback Special) e a dos macacões de Las Vegas.
Como se fosse um alerta ao espectador desavisado sobre a natureza das cinebiografias e do estilo do cineasta, Elvis é narrado por um personagem ambíguo e inconfiável, cujas primeiras cenas aludem tanto ao início de Cidadão Kane (1941) quanto ao de Amadeus (1984). À la Salieri na oscarizada cinebiografia de Wolfgang Amadeus Mozart, o coronel Tom Parker, vivido por Tom Hanks sob próteses, enchimentos e um sotaque caricato, vai rememorar sua conturbada relação profissional com o cantor. Pode-se creditar a Parker tanto a ascensão quanto a derrocada de Elvis (que firmou uma espécie de pacto com o Diabo). Mas se o compositor italiano se sente culpado pela morte precoce do gênio austríaco, o empresário recusa o rótulo de vilão na história do roqueiro morto com apenas 42 anos. Pelo contrário. Chega a dizer que foram feitos um para o outro:
— Nós somos duas crianças estranhas e solitárias buscando a eternidade.
A exemplo de Cidadão Kane, esta será a história de como um garoto pobre tornou-se um rei solitário. Também como na obra-prima de Orson Welles, o filme lança mão de flashbacks e emprega diferentes técnicas narrativas, sempre procurando casar o enredo com o formato. Se Elvis era fã dos gibis do Capitão Marvel Jr., há cenas que simulam páginas de quadrinhos. Se o cantor virou ator de Hollywood, há uma sequência que remete aos antigos cinejornais.
Dado o personagem e o diretor, a música é um personagem à parte. Ora a montagem assinada por Jonathan Redmond e Matt Villa intercala o blues That's All Right (Mama) com um culto gospel. Ora um passeio pela famosa Rua Beale, em Memphis, nos anos 1950, é embalado por trechos de um rap do século 21. Ora a letra de Suspicious Minds é ressignificada — os versos não são mais sobre um complicado relacionamento amoroso, mas sobre a tóxica e abusiva parceria entre Elvis e Parker: "Não podemos continuar juntos / Com desconfiança".
São os truques de Baz Luhrmann para inebriar o espectador, da mesma forma que o coronel Parker entendia o showbiz como um circo ilusionista. Mas de nada adiantariam a imaginação e o tino de Parker e de Luhrmann se eles não contassem com o talento e a dedicação de Elvis Presley e de Austin Butler. Se em entrevistas o diretor disse que Elvis se parece com um filme de super-herói — "Ele sobe tão alto, depara com sua kryptonita e cai" —, coube ao ator fazer o lado humano sobressair.
Californiano de 31 anos, coadjuvante em alguns seriados da Disney quando adolescente, Butler era um ilustre desconhecido, o que contribui para o número de mágica funcionar tão bem: não somos distraídos por sua história pregressa. Seu único papel de destaque havia sido em uma série derivada de Sex and the City, O Diário de Carrie (2013-2014) — viveu Sebastian Kydd, a paixão da versão teen de Carrie Bradshaw. Também havia atuado em Era uma Vez em... Hollywood (2019), de Quentin Tarantino, como Tex Watson, integrante da seita de Charles Manson. Para encarnar Elvis, preparou-se durante um ano, treinando os trejeitos, o tom de voz, a dicção e, claro, a dança e o canto — é ele quem realmente interpreta os sucessos na fase jovem; nas cenas a partir do '68 Comeback Special, o filme recorre a gravações originais.
Curiosamente, é justamente a partir da fase Las Vegas que a caracterização de Austin Butler se torna mais impressionante. A ponto de espectadores não perceberem a transição do Elvis personagem para o Elvis verdadeiro em uma das derradeiras apresentações do cantor: Unchained Melody, última canção do último show, no dia 21 de junho de 1977, em Rapid City (Dakota do Sul). Aí está a única vantagem de ver Elvis no streaming: poder rever uma cena quantas vezes você quiser, poder comparar a interpretação de Butler com apresentações originais (como a de If I Can Dream, do especial de TV de 1968) e, vá lá, poder interromper a sessão para fazer alguma pesquisa no Google ou no YouTube.
Em entrevista à revista Variety, os editores do filme comentaram a tal sequência com Unchained Melody. Jonathan Redmond elogiou a atenção que o ator deu aos detalhes ("Com as respirações e pausas, ele acertou em cheio"). Matt Villa lamentou a possível desatenção de parte da plateia:
— Me dá um soco no coração toda vez que vejo aquela cena e o rosto do Elvis. Quando estamos assistindo ao filme com o público, eu olho em volta para ver se as pessoas têm a mesma emoção, e muitas vezes não há.
E é isso mesmo, um soco no coração, assistir a um rei nitidamente debilitado (tinha diabetes, glaucoma, hipertensão, constipação severa...), mas ainda bonito, com a voz ofegante, mas ainda poderosa, interpretando uma das mais belas canções já escritas. Sentado ao piano, com o guitarrista e amigo Charlie Hodge segurando o microfone, o cantor entoa versos que a um só tempo exprimem a saudade de um imenso amor e soam como um pedido de misericórdia para o sofrimento que Elvis Presley vinha enfrentando: "Meu amor, minha querida / Eu tenho ansiado por seu toque / Um longo tempo solitário / E o tempo passa, tão lentamente / E o tempo pode fazer tanto / Você ainda é minha? / Eu preciso do seu amor / Eu preciso do seu amor / Deus, mande depressa teu amor para mim / Rios solitários fluem para o mar / para o mar / Para os braços abertos do mar / Rios solitários suspiram, Espere por mim / espere por mim / Estarei chegando em casa / espere por mim / Meu amor, minha querida / Eu tenho ansiado / ansiado por seu toque / Um longo tempo solitário / E o tempo passa, tão lentamente / E o tempo pode fazer tanto / Você ainda é minha? / Eu preciso do seu amor / Eu preciso do seu amor / Deus, mande depressa teu amor para mim".
Só não chora quem já morreu. Elvis vive.