O lançamento do Star+, nova plataforma de streaming da Disney, trouxe de volta a cartaz pérolas do cinema como Estrada para Perdição (2002), filme de Sam Mendes ganhador do Oscar de melhor fotografia (assinada por Conrad L. Hall) e indicado a outras cinco estatuetas — incluindo ator coadjuvante (Paul Newman) e direção de arte.
O protagonista é Tom Hanks, o herdeiro espiritual James Stewart (1908-1997). Costuma encarnar o homem comum, com quem praticamente todos os espectadores podem se conectar. Seus personagens, quase sem exceção, são decentes, gentis e generosos.
As trajetórias são parecidas até nas premiações. Stewart foi indicado cinco vezes ao Oscar de melhor ator: ganhou por Núpcias de Escândalo (Philadelphia Story, 1940) e concorreu por A Mulher Faz o Homem (1939), A Felicidade Não se Compra (1946), Harvey (1950) e Anatomia de um Crime (1959). Hanks também disputou cinco e deve a uma história de Filadélfia sua primeira estatueta — Filadélfia (1993). Venceu ainda por Forrest Gump (1994) e esteve no páreo por Quero Ser Grande (1988), O Resgate do Soldado Ryan (1998) e Náufrago (2000), além de ter sido lembrado na categoria de coadjuvante por Um Lindo Dia na Vizinhança (2019). No Globo de Ouro, concedido pela imprensa estrangeira, os dois atores receberam o troféu Cecil B. DeMille, pelo conjunto da carreira. Jimmy em 1965, aos 56 anos. Tom em 2020, com 63.
Ambos também se desviaram, pelo menos uma vez, da persona de mocinho que construíram. Stewart, é verdade, fez isso nos primeiros anos da carreira, antes de virar um habitué do Oscar: interpretou um assassino em After the Thin Man (1936). Hanks, igualmente, encarnou um matador da década de 1930, mas já era quase um cinquentão quando resolveu se aventurar como bandido em Estrada para Perdição.
Versão de uma história em quadrinhos de Max Allan Collins e Richard Piers Rayner, trata-se do segundo longa-metragem dirigido por Sam Mendes, depois dos cinco Oscar conquistados por Beleza Americana (1999). Na trama, um pai e um filho encurtam a distância do afeto ao trilharem um caminho pavimentado pela vingança na vasta e árida paisagem dos Estados Unidos da Grande Depressão.
No seu papel mais soturno, Hanks interpreta Michael Sullivan, assassino a mando de um mafioso irlandês da Chicago de 1931, John Rooney (Paul Newman). Temido por inimigos e aliados, Sullivan é amado por Rooney, que o criou como se fosse um filho. Os dois são pais, mas ambos não conseguem estender a seus filhos o carinho e a cumplicidade de sua relação.
Rooney sabe que seu filho Connor (um Daniel Craig pré-007) é um mau sujeito, instável e dado a rompantes de violência. Sullivan repele Michael (Tyler Hoechlin) com medo de que o filho termine por seguir o seu rumo.
E, em uma noite de trabalho, Michael realmente segue o pai. Escondido, o garoto testemunha o assassinato de outro mafioso por Connor. Como o crime não pode vir à tona, a esposa (Jennifer Jason Leigh) e a família de Sullivan viram alvo.
Estabelece-se uma caçada de mão dupla pelo meio-oeste dos Estados Unidos. Enquanto os Sullivan procuram por Connor, parte em busca deles o frio Maguire (Jude Law), que fotografa para as páginas policiais dos jornais suas próprias vítimas, recrutado por Frank Nitti (Stanley Tucci), amigo de Rooney e braço-direito de Al Capone.
Fotografado de forma monocromática por Conrad L. Hall, em um noir suavizado, Estrada para Perdição oferece um punhado de beleza mórbida. Tão cedo o espectador não esquecerá da matança orquestrada em uma noite chuvosa nas ruas de Chicago, em que a câmera acompanha os corpos tombarem silenciosamente.
Ao requinte visual — que inclui a fabricação de tecidos pesados como os usados nos anos 1930 —, Mendes acrescenta uma releitura de temas do faroeste clássico, uma sensibilidade incomum em filmes de gângster e um olhar comovente sobre a complexa e, às vezes, dissonante relação entre pai e filho.
Michael, após descobrir no ofício do pai as fraquezas do homem, torna-se a fortaleza pela qual Sullivan não hesita em assegurar seu lugar no inferno. O personagem de Tom Hanks tem que conciliar o orgulho de enxergar em Michael sua herança com o desejo de que o filho nunca precise caminhar sobre suas pegadas. Com a prece de que pelo menos Michael possa ver o céu.