Dez indicações ao Oscar não fazem jus à qualidade de 1917. Vencedor do Globo de Ouro de melhor drama e de melhor diretor, o filme de Sam Mendes deveria concorrer a mais duas ou três categorias.
Com sessões de pré-estreia neste sábado (18) e domingo (19) e em cartaz a partir da próxima quinta-feira (23), 1917 marca o retorno do cineasta inglês de 54 anos à ala mais cobiçada da festa promovida pela Academia de Hollywood - Mendes está indicado aos troféus de melhor filme, como um dos produtores, diretor e roteiro original (coescrito com a estreante escocesa Kristy Wilson-Cairns).
Exatos 20 anos atrás, seu primeiro longa-metragem, Beleza Americana, ganhou cinco Oscar, incluindo os dois principais. Estrada para a Perdição (2002) disputou seis estatuetas do segundo escalão, mas levou só a de fotografia. Soldado Anônimo (2005), que trata sobre a Guerra do Golfo, em 1991, sequer foi indicado, e Foi Apenas um Sonho (2008) não faturou nenhuma das três categorias pelas quais brigou. Nos últimos tempos, Mendes estava envolvido com a franquia 007 - dirigiu Operação Skyfall (2012) e Spectre (2015), ambos oscarizados, mas pelas canções de Adele e de Sam Smith.
1917 realça virtudes que Mendes demonstrou ao longo da carreira, como a elegância narrativa, a direção de elenco e o capricho com a parte técnica - não à toa, seus atores e seus diretores de fotografia e de arte costumam concorrer a prêmios (vide Beleza Americana, Estrada para a Perdição e Foi Apenas um Sonho). O filme é baseado nas memórias de seu avô paterno, Alfred Mendes, que lutou na Primeira Guerra Mundial, mas quase tudo é ficção.
A trama é relativamente simples. Passa-se ao longo de um dia, no começo de abril de 1917, no front francês de combate. Ali, dois jovens soldados ingleses, os cabos Blake (Dean-Charles Chapman, o Tommen Baratheon das temporadas 4 a 6 de Game of Thrones) e Schofield (George MacKay, o filho mais velho de Viggo Mortensen em Capitão Fantástico), recebem a missão de atravessar a chamada Terra de Ninguém, cruzando territórios sob o domínio ou recém abandonados pelos alemães, para entregar uma mensagem que pode salvar 1,6 mil vidas do exército britânico. A complexidade está na forma como essa história é contada.
A forma talvez seja o grande atrativo de 1917, mas ela não está empregada apenas como uma firula cinematográfica. A decisão de filmar como se fosse um longo e único plano sequência, ou seja, sem cortes (tipo Festim Diabólico, de Alfred Hitchcock, Ainda Orangotangos, de Gustavo Spolidoro, e Birdman, de Alejandro Gonzalez-Iñárritu), traduz a incumbência de Blake e Schofield: eles não podem parar, precisam estar sempre em movimento, o tempo corre contra eles. Portanto, nem a produção pode se dar ao luxo de rodar uma cena de um ângulo e depois de outro para combiná-las na montagem.
A partir do momento em que os dois se veem obrigados a abandonar o descanso em uma paisagem campestre, a câmera os mostrará caminhando por entre trincheiras - primeiro, vindo em direção a nós, depois, nos tornamos uma espécie de sombra às costas dos personagens, seguindo seus passos. Enquanto isso, as imagens vão descortinando o imenso cenário e a quantidade de coadjuvantes e figurantes, além de cartazes contrastantes que nos relembram sobre como os soldados tentam reproduzir a ideia de um lar mesmo sob a iminência da morte - na "Viela Paraíso", recomenda-se: "Fique de cabeça baixa durante o dia".
O impacto provocado pelo virtuosismo técnico se repetirá mais vezes, justificando as indicações ao Oscar em categorias como fotografia (o veterano Roger Deakins, premiado por Blade Runner 2049, faz poesia noturna em uma cidade destruída, opondo fogo e escuridão) e design de produção - fundamental não só pela recriação dos campos de batalha, mas pelo posicionamento milimétrico dos cenários. Afinal, os personagens movem-se de um a outro constantemente, e todos precisaram ser construídos tendo em mente o tempo de deslocamento dos atores e o percurso da câmera (Mendes ensaiou tudo à exaustão).
Em um filme que se vê muito, o que se ouve também é importante. Disputam o Oscar a edição de som (que é a captação do som, seja do ambiente ou produzido em estúdio) e a mixagem de som (que é a sincronização desses elementos de áudio com as imagens), assim como a excelente trilha sonora composta por Thomas Newman. Ele sabe a hora de, quase subliminarmente, induzir a tensão do espectador e a hora de aumentar as apostas, subindo a música.
É um pecado que 1917 concorra ao prêmio de maquiagem mas não ao de figurinos, dado o detalhismo de Jacqueline Durran – chega a ser comovente reparar que o uniforme de Schofield, depois que ele nada em um rio, vai secando aos poucos, a ponto de em uma cena percebermos que apenas a barra do casaco "continua" molhada. Mas a maior injustiça foi a não indicação do editor Lee Smith, habitual colaborador do diretor Christopher Nolan (venceu o Oscar por Dunkirk). Sim, porque 1917 somente simula ser um filme sem cortes. Na verdade, há dúzias deles, ligando cenas longas, de seis a oito minutos, e curtas, com pouco mais de um minuto. Alguns o público pode intuir, como quando há um blecaute, mas outros tantos estão escondidos. Esse trabalho invisível merecia brigar pela estatueta dourada.
O esmero técnico não comprometeu a parte humana. Dadas as circunstâncias, Blake e Schofield (que poderia valer uma indicação a MacKay) são personagens bem desenvolvidos, que espelham o que é, para um homem comum, ser tragado pelo horror e pela estupidez da guerra. Alternam medo e coragem, lançam mão do humor para suportar a abundância da morte (corpos se acumulam por todos os lugares), buscam meios para se manterem em pé e em marcha - há uma sequência linda em um acampamento, onde um soldado, à capela, entoa uma canção sobre estar voltando para casa, para ver seu pai e sua mãe. Ao longo da perigosa e bastante imprevisível jornada, surgirão personagens coadjuvantes interpretados por carismáticos atores britânicos ou irlandeses, como Colin Firth, Andrew Scott (o padre bonitão da série Fleabag), Mark Strong, Benedict Cumberbatch e Richard Madden (o Robb Stark de GoT).
A interlocução com eles permite a 1917 abordar temas tão conflitantes como espírito solidário e desumanização - voluntária ou compulsória - dos militares. Ouviremos verdades cruéis também. Um oficial alerta para que haja testemunhas na entrega da ordem de interrupção dos planos de combate:
- Alguns homens só querem lutar.
Outro ironiza o heroísmo póstumo:
- Nada como uma medalha com uma fita para animar uma viúva.