Sempre eretos, como se quisessem penetrar o céu, faróis são símbolos fálicos. Sua função para a navegação permite associá-los a iluminação espiritual e sabedoria: estão lá para nos guiarem no escuro e em meio a turbulências. Por conta de sua localização – não raro em ilhas –, também remetem à solidão.
Todos esses significados se misturam a toda sorte de referências em O Farol (The Lighthouse), filme americano que recebeu o prêmio da crítica no Festival de Cannes, em maio do ano passado, mas que só estreou no Brasil na última quinta-feira (2) – desde já, compete para terminar 2020 na lista dos melhores títulos da temporada nacional. É o segundo longa-metragem de Robert Eggers, 36 anos, o realizador de A Bruxa (2015), um expoente do que se convencionou chamar de horror folk ou pós-terror (por serem mais sofisticados, não se valendo tanto dos sustos). Na obra anterior, ambientada na Nova Inglaterra do século 17, o diretor e roteirista acompanha a jornada de uma família cristã excomungada. Isolados à margem de uma floresta, eles vão cair em desgraça quando o filho caçula, um bebê, é sequestrado por uma feiticeira. Vencedor do troféu de melhor direção no Festival de Sundance, nos Estados Unidos, Eggers inspirou-se no folclore e em relatos reais da época para criar uma história que reflete sobre temas ainda atuais: "o medo do poder feminino e o processo de transformá-lo em algo obscuro e mau", como ele mesmo definiu. No seu caldeirão, cozinhou influências como os filmes do sueco Ingmar Bergman, o "cineasta da alma", e a pintura O Sabá das Bruxas (1798), do espanhol Francisco Goya.
Em O Farol, o jovem cineasta permanece na Nova Inglaterra, mas avança no tempo (agora estamos no início dos anos 1880) e inverte o foco, dando protagonismo aos homens. Novamente, mesclou sua pesquisa histórica – diários de marinheiros e faroleiros – a lendas (no caso, da mitologia grega). Peças de ficção, como o clássico romance Moby Dick, de Melville, e os contos de horror fantástico de H.P. Lovecraft, um notório filho da Nova Inglaterra, também contribuíram para o roteiro escrito a quatro mãos com o irmão, Max, assim como se fazem presentes elementos da psicanálise – afinal, o próprio Eggers já declarou que "a escuridão dentro da mente do ser humano é o tipo de horror que me interessa".
Visualmente, mas também tematicamente, as referências estéticas são os filmes do dinamarquês Carl Theodor Dreyer, autor de A Paixão de Joana d'Arc (1929) e O Vampiro (1932), e o expressionismo alemão, movimento que floresceu na de década de 20 - F.W. Murnau, de Nosferatu (1922), é um dos diretores preferidos de Robert Eggers, ao lado do já citado Bergman e do austríaco Michael Haneke, de Funny Games – Violência Gratuita (1997) e A Fita Branca (2009), com quem o americano compartilha o gosto de perturbar a audiência.
Combinados à sinistra trilha musical e aos atordoantes efeitos sonoros, todos esses pontos criam uma rara experiência sensorial, que certamente há de produzir melhores resultados em uma sala de cinema, a exemplo do que Ari Aster, um colega de gênero cinematográfico e de geração (tem 33 anos), nos ofertou em Midsommar (2019). Mas se Aster explora a luz solar, as cores e cada espacinho da tela para nos provocar apreensão e admiração, Eggers aposta no preto e branco – sobretudo no preto, realçado pelo uso de equipamentos antiquíssimos (como uma lente francesa de 1905 e uma película ortocromática, que obscurece todos os tons de vermelho, incluindo os poros e vasos sanguíneos do rosto dos atores) – e em um formato menor do que o tradicional: é um quadrado, e não um retângulo.
Esse aspecto formal não é uma mera bossa. Atende ao objetivo de forçar um duplo isolamento: o do espectador, momentaneamente apartado do cinema mais convencional, e, claro, o dos personagens, afastados do convívio com o mundo (as bordas da tela) e confinados a um espaço claustrofóbico (o quadrado centralizado na tela). Eles são os marinheiros Thomas Wake (Willem Dafoe, um deleite aos olhos e aos ouvidos, como de hábito), um hirsuto veterano, e Ephraim Winslow (Robert Pattinson, que cumpre com brilho seu papel mais exigente), seu subalterno. Os dois acabam de chegar a uma ilhota desabitada, onde, durante um mês, cuidarão de um farol (a propósito, construído especialmente para o filme).
Lá, uma rotina dura e monótona os consome. O silêncio só é quebrado pelo barulho do mar, por ruídos metálicos e pela incômoda sirene do farol. Gaivotas, nem sempre amistosas, são a única companhia.
Não demora para que os dois homens percam a noção do tempo e o juízo (atenção: pode haver spoilers em frente) – "O tédio transforma os homens em vilões, é a oficina do diabo", alerta Thomas; o único remédio é a bebida. A relação entre os faroleiros é de animosidade – o mais velho distribui ordens e ofensas ao rapaz, que vai perigosamente alimentando o ressentimento, ao mesmo tempo em que se permite, às escondidas, masturbar-se enquanto vela o sono do companheiro de infortúnio. Quando embriagados, unem-se para cantar e dançar músicas sobre "vadias assanhadinhas".
Também não demora a acontecerem coisas estranhas (daqui por diante, os spoilers serão mais pesados). Tanto um quanto o outro guardam mistérios e camuflam seu passado. Aparições, como a de uma sereia, vão levantar dúvidas em Winslow e no espectador: o que é real e o que é fantasmagoria? Quem, dos dois personagens, é o mais louco? Por que diabos Thomas não deixa o subordinado subir até a luz do farol?
Essa capacidade de distorcer nossa percepção e nos incitar à reflexão – seja solitária, seja buscando textos analíticos, seja na conversa com os amigos – é uma das tantas virtudes do filme. Que é uma obra aberta a interpretações: há quem a veja como um estudo sobre a loucura, ou como uma meditação sobre a masculinidade tóxica, ou como uma representação de embates perenes (o velho contra o novo, o conhecimento teórico diante do conhecimento prático, Homem versus Divindade).
A explicação que escolhi não é minha, a encontrei, primeiramente, em um post do professor de Comunicação Ciro Inácio Marcondes, da Universidade Católica de Brasília, no Facebook, e a partir dali fui pesquisando mais e refazendo, na cabeça, o caminho do filme para juntar supostas pistas espalhadas por Eggers. A fotografia em preto e branco, que traduz uma dualidade; a revelação, em um diálogo, de que o verdadeiro prenome de Winslow é o mesmo de Wake, Thomas, que significa "gêmeo" em sua origem aramaica; e a própria declaração do diretor sobre a escuridão da mente humana reforçam a seguinte teoria: os dois faroleiros são a mesma pessoa.
Talvez o mesmo fantasma, como apontou Marcondes. Os dois estão condenados a um eterno retorno àquele farol assombrado, onde o mais jovem encontra e mata a sua versão envelhecida e enlouquecida, dando início a um novo ciclo de tormento. A última cena é emblemática: nu, Winslow está deitado nas rochas enquanto uma gaivota dilacera seu fígado – que, tal qual no mito de Prometeu, vai se regenerar no dia seguinte, para que a tortura continue.
Na mitologia grega, Prometeu foi punido por ter roubado o fogo de Héstia (que representa o conhecimento) e dá-lo aos mortais – Zeus temia que estes se tornassem tão poderosos quanto os próprios deuses. Winslow é castigado por ter descoberto a verdade – é isso o que o personagem de Dafoe procura evitar ao impedir que o de Pattinson chegue à casa de luz. De certa forma, Wake (que pode ser traduzido como Desperto) quer poupar Winslow do sofrimento que já conhece. Não à toa, quando o jovem enfim sobe à torre, termina por despencar escada abaixo, em uma descida ao inferno. Não faltaram avisos: a todo instante, como onda, como chuva, como goteiras ou como infiltração, a água – uma metáfora do inconsciente ou da memória – fustiga o protagonista.