Virou tendência. Midsommar – O Mal Não Espera a Noite, que entra em cartaz nesta quinta (19), é mais um filme de terror que ultrapassa as duas horas de duração, depois dos 134 minutos de Invocação do Mal 2 (2016), dos 146 de It – A Coisa (2017) e dos 169 de It – Capítulo Dois (2019). Haja disposição sadomasoquista da audiência para aguentar tanto tempo de aflição e calafrios do lado de cá, violência física e psicológica do lado de lá, né? Mas Midsommar vale cada segundo de suas duas horas e 27 minutos. Aliás, parafraseando o subtítulo nacional, se você está com a tarde livre, não espere a noite para ir ao cinema. Até porque será difícil dormir depois de exposto à profusão de imagens perturbadoras e à saraivada de sensações oferecidas pelo diretor e roteirista Ari Aster. Não à toa, a classificação indicativa é 18 anos (contém conteúdo sexual, violência extrema e drogas ilícitas, informa o Ministério da Justiça).
Lançando mão de todos os recursos disponíveis – do roteiro que deliberadamente espalha pistas sobre o que vai acontecer com os personagens durante uma celebração pagã na Suécia à fotografia que nos faz temer o próprio sol, o inclemente sol, da trilha sonora com cordas dissonantes e percussão que nos envolve em um transe à montagem que dilata, distorce e desorienta –, o cineasta possibilita ao público uma rara experiência sensorial. Por pelo menos um instante, é como se fôssemos os participantes do bizarro culto transcorrido durante o solstício de verão, todos siderados pela mistura de som e fúria, de roupas brancas e trevas interiores, de natureza bucólica e ritos mórbidos, de choque e catarse.
A propósito, não se preocupe: não haverá spoilers neste texto. Mesmo assim, se você não quiser saber nada mais, esta é a hora de salvar o link para ler depois.
Adiante.
Midsommar é o segundo longa-metragem de Aster, americano de 33 anos. Ele já fizera um bom barulho na estreia, Hereditário (2018), em que Toni Collette encarna a protagonista, o eixo de uma família assombrada pela morte: o pai dela se matou, a mãe acaba de morrer, e a filha adolescente perde a vida em um grotesco acidente com o carro pilotado pelo seu irmão mais velho. É uma outra tragédia familiar que abre o novo filme. Depois de uma sequência que mostra paisagens nevadas – um contraste climático com o que está por vir, mas também um prenúncio do inverno das almas –, somos apresentados a Dani, interpretada pela atriz inglesa Florence Pugh, de Lady Macbeth (2016), em um desempenho já cotado ao Oscar. A jovem está preocupada com o recente e-mail que recebeu da irmã bipolar: "Está tudo dando errado. Nossos pais vêm comigo. Adeus". Ela também se preocupa em como dividir sua angústia com o namorado, Christian (Jack Reynor), pois acredita que abusa emocionalmente dele. Do outro lado do telefone, Christian e seus amigos – o CDF Josh (William Jackson Harper), o tarado maconheiro Mark (Will Poulter) e o gentil sueco Pelle (Wilhelm Blomgren) – só estão preocupados com a viagem que farão para Hårga, um vilarejo na província de Hälsingland, na região central do país escandinavo, onde acompanharão durante nove dias uma cerimônia coletiva conduzida pela família de Pelle.
Com habilidade para equilibrar tensão e senso de humor, Aster, em poucos minutos, estabelece os termos da relação entre Dani e Christian – estão em vias de se separar, dada a combinação explosiva entre a ansiedade dela e o egoísmo dele –, a personalidade de seus amigos e os fantasmas que a protagonista vai carregar na mala ao se juntar aos quatro na jornada rumo à Europa.
Um desavisado pode achar que os cinco amigos e os espectadores acabaram de embarcar para uma roubada como O Albergue (2005), de Eli Roth, em que dois americanos e um islandês resolvem tirar a limpo um boato sobre uma hospedagem na Eslováquia repleta de mulheres lindas e sedentas por sexo. Mas, ainda que os personagens de Midsommar sejam movidos por uma curiosidade juvenil que pode se revelar traiçoeira, Ari Aster tem muito mais requinte visual e ressonâncias psicológicas a ofertar. Na Suécia, enquanto os amigos dirigem de Estocolmo a Hårga, a câmera vira lentamente de ponta-cabeça, prenunciando que seus mundos também serão virados, antecipando o inferno sobre a Terra. Os rituais aos quais assistem ou dos quais participam evocam mitos perenes e temas contemporâneos (evidentemente, Aster aproveita o cenário para alguns acenos ao cineasta sueco Ingmar Bergman, a quem ele já definiu como seu herói) e alinham o filme a uma vertente, a do horror folclórico, que vem rendendo títulos elogiados, como A Bruxa (2015), A Maldição da Bruxa (2017) e A Lenda de Golem (2018). Diferentemente de O Albergue, também, Midsommar subverte algumas características dos filmes de terror – praticamente não há sustos, inexiste o sobrenatural, e vale observar a trajetória de Dani – e pouco se interessa em como os personagens vão sofrer, mas sim em por que eles sofrerão. Há algumas lições, digamos assim.
O próprio Aster é um professor do melhor tipo: generoso, ao nos fornecer uma série de elementos (como o urso na jaula e o templo proibido) com os quais trabalharemos mais tarde, e exigente – não nos dá o resultado da conta, mas nos ensina a chegar a ele. Sua arquitetura de cena é impressionante, sobretudo nos planos abertos, em que vale a pena perscrutar tudo, à procura de uma movimentação suspeita, um olhar esquisito, uma esclarecedora pintura na parede. O cineasta confia tanto no seu talento para construir o horror e na capacidade do aluno para absorvê-lo que, em várias e longas passagens, prescinde dos diálogos. Estes, quando necessários, se curvam a essa matemática singular, em que uma frase dita aqui ecoará logo ali, dando sentido ou ressignificando o que vimos antes.
Ver.
Em seu sentido mais amplo, é nisso que Midsommar investe bastante. Ari Aster parece nos dizer que, não raro, devemos olhar com os olhos dos outros para enxergar o que está a um palmo de distância. Os sinais estavam todos aí, nós é que somos autocentrados demais para prestar atenção. Que a empatia há de ser a chave para nossa sobrevivência, escutar e abraçar o outro a ponto de nos perceber falando a mesma língua em uma terra estranha. Mas não podemos deixar de olhar para dentro também e entender que, às vezes, precisamos cauterizar nossas feridas emocionais, tacar fogo no passado para clarear o futuro.