Bobagens como "novo O Exorcista" e "novo O Iluminado" vêm acompanhando as resenhas sobre Hereditário desde a consagradora apresentação do filme, em janeiro passado, no Festival de Sundance, vitrina do chamado cinema independente americano – mas não exatamente desatrelado dos grandes estúdios e distribuidoras, que garimpam ali títulos com potencial atrativo de faturamento na relação custo-benefício.
Esse impulso pela rotulagem comparativa, tanto de uma crítica noviça quanto da campanha de marketing que vende "o mais aterrorizante filme dos últimos tempos", pode agora ser balizado diante da tela na sala escura pelo espectador de nervos fortes.
Uma das estreias da semana no circuito brasileiro, Hereditário triplicou em arrecadação seu custo de US$ 10 milhões apenas nos EUA, onde foi lançado em 9 de junho. É o primeiro longa-metragem do diretor e roteirista americano Ari Aster, 31 anos, que exercitou-se antes em seis curtas. Aster é um realizador que mostra domínio tanto da técnica cinematográfica quanto das convenções básicas do bom filme de horror – e conhecer bem as ferramentas do ofício e do gênero, sabemos, é fundamental para subvertê-lo e, sem amarras, apresentar algo original .
Em primeiro lugar, o espelhamento com os clássicos de dois mestres, O Exorcista de Friedkin e O Iluminado de Kubrick, passa forçosamente da medida e gera uma expectativa que pode resultar em frustração. Se for para marcar uma comparação, aliás, a sintonia mais afinada de Hereditário, e mesmo assim distante em proposta e resultado, é com O Bebê de Rosemary, obra-prima de Polanski. Aster, lógico, não tem culpa dessa barafunda de associações cinéfilas que são apenas bengalas promocionais. Seu filme caminha muito bem com as próprias pernas.
Hereditário, sem entregar surpresas da trama, segue o modelo do filme de terror que não joga para a torcida apelando para o ritmo frenético e os sustos cronometrados no roteiro a intervalos curtos. Com vagar e criatividade, Aster vai esticando a corda. Aposta mais na sugestão do pavor iminente do que na sua representação gráfica – represada até transbordar com potência no clímax, como no recente A Bruxa, outro filme que deu uma boa revigorada no terror para gente mais crescida e que ainda gosta de ser provocada diante de um filme que vá além do mais do mesmo, em qualquer gênero.
O ponto de partida de Hereditário é um drama familiar. A mãe Annie (Toni Collette), o pai Steve (Gabriel Byrne), o adolescente Peter (Alex Wolff) e a caçula Charlie (Milly Shapiro) acompanham o funeral da mãe de Annie. Exceto por Charlie, estão todos mais aliviados do que tristes. A falecida é lembrada como uma megera que marcou com perturbações psicológicas e traumas emocionais todo o seu clã. Annie em especial.
É sobre o legado deixado pela matriarca morta que o filme vai mudando seu curso narrativo. Aster alterna com habilidade o foco sobre cada personagem em guinadas de rumo. Já ganha a plateia de primeira com a perturbadora e enigmática presença de cena da pequena Charlie – a atuação de Milly Shapiro é um assombro em um elenco todo ele com vigorosas performances. Destaque também para a personagem vivida por Ann Down, atriz que vive a sádica guardiã das aias na série The Handmaid’s Tale.
O diretor permite-se um muito sutil toque de humor – o do riso nervoso – para costurar a história que vai abrindo portas a territórios cada vez mais sinistros. Acerta o tom tanto na representação do terror psicológico que martiriza uma mente fragmentada entre o real e o imaginário quanto na do horror ao desconhecido, guiado por forças ocultas e pelos que nelas creem com diabólica fé.