No aniversário de dois anos de GaúchaZH, colunistas escrevem especialmente para você, assinante, trazendo dicas preciosas.
A gente vive em bolhas. Podem ser grandes e razoavelmente porosas, mas são bolhas. Na verdade, creio que sempre foi assim – as redes sociais apenas permitiram mapeá-las, visualizar suas fronteiras. Enfim. Na minha bolha, um dos "só se fala disso" dos últimos tempos é o filme Coringa (Joker), que entra em cartaz no Brasil no dia 3 de outubro, precedido por grande expectativa. Mas, como jornalista, eu não posso presumir que todos vocês saibam por que há um auê em torno da quinta encarnação cinematográfica do arqui-inimigo do Batman – Joaquin Phoenix assume o papel vivido anteriormente por Cesar Romero (no seriado e no longa-metragem dos anos 1960), Jack Nicholson (em 1989, sob direção de Tim Burton), Heath Ledger (em Cavaleiro das Trevas, de Christopher Nolan, que lhe valeu o Oscar póstumo de melhor ator coadjuvante em 2010) e por Jared Leto (em Esquadrão Suicida, de David Ayer, que lhe rendeu uma indicação ao Framboesa de Ouro de pior ator coadjuvante em 2017). Portanto, deixem eu dizer duas razões que nos fazem contar as horas até a estreia.
1) O primeiro motivo para a grande expectativa é a grande conquista alcançada por Coringa. O diretor Todd Phillips (o mesmo da divertida trilogia Se Beber, Não Case!) levou um filme baseado em quadrinhos de super-herói aonde nenhum outro chegou: no começo de setembro, venceu um dos mais importantes – e o mais antigo – festivais de cinema do mundo, o de Veneza, na Itália. O Leão de Ouro concedido pelo júri que a cineasta argentina Lucrecia Martel presidiu é o prêmio máximo dado a um filme de super-herói. Até então, os fiéis fãs do gênero festejavam, basicamente, a estatueta de Ledger e as pioneiras indicações de Logan (2017) ao Oscar de roteiro adaptado e de Pantera Negra (2018) a melhor filme, além do troféu de animação para Homem-Aranha no Aranhaverso (2018).
A consagração de Coringa em Veneza consolidou o que chamo carinhosamente de A Vingança dos Nerds. Nós, os que crescemos ouvindo que gibis eram coisa de criança e vendo raros deles serem transportados para o cinema nas décadas de 1980 e 1990, agora enchemos as salas para assistir a uma média de sete títulos por ano (para comparar, entre 1985 e 1989, houve apenas dois lançamentos: Superman IV e Batman). Esse casamento entre Hollywood e o público já colocou 12 longas do gênero no clube do bilhão, que neste ano viu Avatar (2009) ser destronado por Vingadores: Ultimato, com US$ 2,79 bilhões arrecadados. Ao dinheiro, ao sucesso comercial, agora somou-se o reconhecimento artístico.
2) O segundo motivo para a grande expectativa é o grande debate provocado por Coringa, iniciado já no lançamento de seu primeiro trailer e amplificado após o triunfo na Itália. Em que pesem os elogios à performance de Joaquin Phoenix (desde já um favorito a finalmente erguer o Oscar de melhor ator, após concorrer por Johnny & June e O Mestre), em que pese a boa recepção às referências temáticas e estéticas a Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (1982), duas obras dirigidas por Martin Scorsese, o filme vem recebendo algumas pesadas acusações. Na revista Time, por exemplo, Stephanie Zacharek escreveu que Coringa tenta ser um filme sobre o vazio de nossa cultura, mas, em vez disso, é um exemplo bem-acabado do que supostamente retrata. A crítica foi uma das tantas pessoas a expressar uma velha e sempre pertinente preocupação quanto à identificação do público com um psicopata. Ela lamenta que o diretor Todd Phillips faça o espectador simpatizar com Arthur Fleck, o personagem encarnado por Phoenix, um aspirante a comediante na Gotham City de 1981 que todo dia leva uma rasteira da vida (e do Estado, e da sociedade). A explosão de violência estaria justificada.
Zacharek vai além: Arthur "poderia ser facilmente adotado como o santo patrono dos incels". O mesmo desassossego foi expressado por Richard Lawson, na Vanity Fair (Coringa "pode ser uma propaganda irresponsável para os homens que a obra quer retratar como doentes"), e por David Ehrlich, no site Indiewire – o crítico não poupou elogios ("um dos mais transgressivos blockbusters do século 21, inquestionavelmente a mais corajosa reinvenção do cinema de super-herói desde Cavaleiro das Trevas"), mas também classificou como "tóxico" o filme, por ser "um grito de guerra para a autopiedade dos incels".
Incels, para quem ainda não sabe, é a abreviação em inglês para celibatários involuntários, os homens que, por motivos variados, acabam adotando ou resignando-se à abstinência sexual. Muitos deles atribuem às mulheres a culpa por sua virgindade, outros sentem-se superiores a elas, e o discurso de ódio é bastante presente. Podem nunca ter tomado uma atitude mais agressiva, mas esse risco é latente. São bombas-relógios, capazes de explodir não apenas contra o sexo oposto – de tão fragilizados, incels costumam ser presas fáceis para o cooptação por grupos radicais.
Portanto, ao reconhecimento artístico de Coringa, contrapõem-se alguns apropriados senões da crítica. Agora, não custa lembrar que o Coringa é um vilão, e um vilão perturbado e que existe para perturbar – ou seja, faz parte do seu papel bagunçar nossa cabeça, tentar nos mostrar o mundo sob outro prisma, aterrorizar com um espelho nem sempre distorcido da realidade. Ele é, também, um curinga, uma carta que já foi usada de diferentes modos nos gibis, no cinema e na TV – ora mais insano, ora mais cerebral, ora um agente do caos, ora um embaixador de um país fictício. Mas será que pode ser visto como um herói, um personagem inspirador? Respostas a partir do início de outubro.