Miyata tem 44 anos e é o que os japoneses chamam de nettouyo, as pessoas que usam as redes sociais e os fóruns da internet anonimamente para despejar opiniões políticas conservadoras e xenófobas.
O faxineiro Taro Motoyama, 32 anos, é um otaku – o fã extremado – de animes que mora em um apartamento com outros 11 homens, cada qual ocupando um cubículo de 2,5 metros quadrados.
Masui, 33 anos, tem um emprego bom e que paga bem, em uma instituição de ensino. Todo o tempo e todo o dinheiro que sobram ele dedica à adoração da AKB48 e da HKT48, grupos de garotas que cantam e dançam, geralmente vestidas de colegiais.
Ichiro Suzuka, 33 anos, depois de fracassar no desejo de ser médico e de não se contentar como assalariado em uma empresa comercial, decidiu que o que lhe traria a fama – e, consequentemente, as mulheres – seria virar ator pornô.
Os quatro têm duas coisas em comum: correspondem à metade do elenco perfilado no perturbador mangá documentário Virgem Depois dos 30 (editora Pipoca & Nanquim, 244 páginas, R$ 49,90, com tradução de Drik Sada) e, como o título entrega, ainda não tiveram relações sexuais.
Os quatro também são menos incomuns do que se possa imaginar. Segundo Atsuhiko Nakamura, autor da reportagem que ele mesmo adaptou para mangá com desenhos de Bargain Sakurachi, existem mais de 2 milhões de virgens de meia-idade no Japão. Uma pesquisa conduzida pela Universidade de Tóquio e pelo instituto sueco Karolinska revelou, em 2015, que 25,8% dos homens entre 18 e 39 anos nunca transou (entre as mulheres, o percentual cai para 24,6%). Em 1992, a proporção era de um a cada cinco. É uma enorme sombra social no país do Sol Nascente, mas não se deixe enganar pela distância geográfica e cultural: o fenômeno dos incels, os celibatários involuntários, também aparece nos trópicos e por motivos semelhantes àqueles dos asiáticos.
Nakamura traçou oito perfis para ilustrar e tentar compreender o problema, um drama íntimo e frequentemente calado de homens que se veem forçados à abstinência de um dos motores do mundo. Alguns dos personagens atribuem às mulheres a culpa por sua virgindade, outros sentem-se superiores a elas, pelo menos um deles alimenta a fantasia de tornar uma garota a sua escrava sexual. Podem não ter tomado uma atitude mais agressiva, mas esse risco é latente. Trata-se de uma bomba relógio cujas consequências não se limitam ao sexo oposto: de tão fragilizados, incels costumam ser presas fáceis para o cooptação por grupos radicais.
O autor foi astucioso ao ordenar o livro, intercalando os personagens de modo a desacomodar as reações do leitor. O primeiro retratado, Sakaguchi, um cuidador de idosos, está lá para nos provocar asco: é um desastre no trabalho, péssimo colega, peida horrores e ainda vive com a mãe, que o trata como um bebezinho. Define-se como puro sexualmente e diz ter certeza de que vai aparecer a mulher perfeita.
Na segunda história, Nakamura reverte nosso sentimento: é pena o que causa o relato sobre Hiroshi Yamashita, 34 anos, que, sem saber como lidar com a rejeição de uma colega de faculdade, passou a se automutilar e chegou a tentar o suicídio. Fez terapia, buscou o apoio da religião, apaixonou-se outra vez mas, com medo, acabou refugiando-se na fantasia: "Já fiz tanto sexo com a Keiko, na minha cabeça, que não me considero virgem de verdade".
O terceiro entrevistado, Miyata, gera uma recepção ambígua: sua postura pode ser deplorável, mas sua capacidade de autocrítica fascina. Didaticamente, ele explica a confluência entre o extremismo político e os incels. Da inteligência de Miyata, Nakamura nos joga à indigência de Motoyama. Esse já desistiu, embora verbalize a arrogância que caracteriza parcela do grupo social: "Se eu pudesse escolher, tem que ser virgem, porque não quero nada usado pelos outros".
O mergulho de Nakamura na cultura otaku elucida aos desavisados a predileção por personagens de visual infantilizado: é para aproximar da imagem de mulher intocada perseguida por muitos. Quanto mais inocente a garota, também, menor a chance de ela compará-lo a outro homem, um temor compartilhado por quase todos os incels – e potencializado em sociedades competitivas, sejam elas orientais ou ocidentais. Nesse cenário, natural que gente como Masui desenvolva um romance platônico com as idols (as artistas de grupos como o AKB48) ou personagens bidimensionais: eles nunca correrão riscos de falhar, elas nunca vão trai-los.
De quem é a culpa?
Minada pelas exigências e pelas humilhações impostas pela avó que o criou, a estilhaçada autoconfiança do engenheiro de sistemas Matsuno, 37 anos, o tornou um alvo de bullying na escola e de virtuais rebaixamentos no trabalho. Em uma era narcisista, pessoas como Matsuno ficam mais sujeitas ao silêncio (ninguém quer ouvir falar de derrotas) e à solidão
(a publicidade pode ter aberto espaço à diversidade, mas em redes sociais como o Instagram o padrão de beleza segue sendo um pré-requisito para a aceitação – vide o excesso de manipulação que ocorre mesmo em fotos de modelos de corpos sarados). Para mitigar essa última, ele "optou" pela homossexualidade. Ao mesmo tempo, desenvolveu uma perigosa admiração por Tomohiro Kato, homem que se sentia isolado e ignorado, o que o levou a atropelar, esfaquear e matar 17 pessoas em uma rua de Akibahara, bairro de Tóquio, em 2008.
Apesar de não interferir na narrativa, Nakamura faz bastante presente sua voz. Ele especula, faz juízos de valor (realçados pela arte de Sakuraichi, que não raro dá contornos grotescos ou ridículos aos personagens), permite-se vangloriar-se por uma decisão tomada a respeito de Suzuka e até arrisca conselhos algo simplistas: "É preciso tomar cuidado com a falta de higiene e a cafonice extrema". No penúltimo capítulo, ao formular conclusões sobre o fenômeno retratado, ele denota o machismo enraizado no Japão (e, repita-se, em muitas cabeças ocidentais), país que, entre 144 pesquisados, apareceu na 114ª posição em um ranking de igualdade de gênero divulgado pelo Fórum Econômico Mundial em 2017. "Lá, a mulher deve caminhar atrás do homem", declarou em entrevista ao jornal O Globo, em 2015, a cineasta Kaomi Kawase. Lá, um aplicativo de smartphone da polícia de Tóquio para espantar assediadores sexuais em trens tornou-se um sucesso, com 237 mil downloads — o Digi Police toca uma voz gritando "pare" no volume máximo ou produz uma mensagem em tela cheia, que pode ser mostrada pelas vítimas a outros passageiros: "Há um molestador. Por favor, ajude".
Já o autor de Virgem Depois dos 30 afirma: "Mulheres podem ser cruéis. Muitas procuram no homem estabilidade, segurança, aparência agradável, poder econômico, facilidade de comunicação e não têm o menor dó de excluir os que não satisfazem os requisitos.
Aos pobres excluídos, resta apenas se saciar da fantasia, inflando seus egos frágeis com
sua imaginação e descarregando sua agressividade contra os mais fracos. Para amenizar
a solidão, se jogam em oceanos de conteúdo otaku, que são desenvolvidos especialmente para eles".
O contraponto à vitimização masculina é dado, ironicamente, por outro homem, Yamano, organizador de festas que objetivam formar casais entre homens e mulheres solteiros – o Japão tem uma das menores taxas de natalidade. Nesse cenário, Nakamura traça seu último perfil, o de Takashi Kamata, 37 anos, que luta contra as estatísticas: apenas 3% dos homens acima de 35 anos conseguem se casar até os 44. Yamano não faz rodeios para abordar a inaptidão dos virgens depois dos 30: "Eles não sabem se comunicar, não têm empatia, já passaram da idade, têm a renda anual baixa, mas são muito exigentes e apresentam uma autoestima inexplicavelmente elevada". Em resumo: antes de conhecer alguém, o primeiro passo é conhecer a si mesmo.