
O médico e escritor J.J. Camargo defende uma medicina baseada na pessoa, o que significa, entre outras coisas, que o profissional da saúde deve ser, acima de tudo, um bom ouvinte.
Essa ideia é aprofundada em dois livros que o colunista do caderno Vida, de Zero Hora, lançará nesta segunda-feira (31), à 19h, no Centro Histórico-Cultural Santa Casa (Av. Independência, 75), em Porto Alegre.
— A incapacidade de ouvir multiplica a sensação de solidão, que é certamente a doença mais prevalente na atualidade e tem se agravado progressivamente à medida que as pessoas têm vivido mais — diz o autor (leia entrevista abaixo).
Voltado principalmente a estudantes, residentes e médicos, mas também a outros profissionais da saúde, A Medicina da Pessoa no Século XXI (Artmed, 368 páginas, R$ 74,70 a edição impressa e R$ 59,40 o e-book) reúne artigos de colaboradores sobre a arte de cuidar.
A obra é baseada no curso Medicina da Pessoa, ministrado por Camargo, que é o organizador dos textos. Entre os temas abordados, estão a formação de médicos e a humanização do cuidado com pacientes em geral, crianças e idosos, assim como cuidados em situações de saúde mental, desastres, morte e cuidados paliativos.
O outro livro que estará em destaque nesta segunda-feira é O que se Faz por Amor (L&PM, 240 páginas, R$ 59,90), reunião de 76 crônicas — em sua maioria, publicadas originalmente em Zero Hora — sobre a prática de uma medicina humanizada.
Lançado em outubro de 2024, o volume teve sessão de autógrafos na 70ª Feira do Livro de Porto Alegre. Agora, os leitores terão nova oportunidade de prestigiar o autor.
Leia entrevista com J.J. Camargo
O livro A Medicina da Pessoa no Século XXI, que o senhor organizou, propõe que a pessoa — e não apenas a doença — esteja no centro do cuidado. Poderia explicar o que é a medicina centrada na pessoa e dar exemplos de como isso é colocado em prática?
A frequência com que pacientes idosos falam com nostalgia dos médicos de antigamente é um enorme paradoxo, considerando que os médicos modernos são muito mais qualificados tecnicamente do que os nossos antecessores.
A busca das razões desse descompasso revelou diferenças gritantes na capacidade do médico moderno de ouvir, esta que é uma condição elementar para alguém que pretenda cuidar do outro.
A incapacidade de ouvir multiplica a sensação de solidão, que é certamente a doença mais prevalente na atualidade e tem se agravado progressivamente à medida que as pessoas têm vivido mais.
A medicina da pessoa, resumidamente, pretende ensinar que o médico moderno não pode abrir mão da tecnologia — pelo contrário, quanto mais tecnologia, melhor —, mas do ponto de vista do paciente esse cuidado é insuficiente, porque ele nunca se sentirá como uma doença ambulante, e sim como uma pessoa que adoeceu, com seus medos e fantasias originais.
Para o médico, a doença pode ser apenas uma abstração da realidade que está nos livros, nos laudos de patologia, de tomografia, etc. O grande conflito de sentimentos é que para o paciente a doença significa apenas a expressão do sofrimento, porque é só isso que ele percebe.
Que tema abordados no livro o senhor entende que são menos debatidos do que merecem?
Quando ficou claro que o médico recém-formado não conseguia convencer o paciente do que ele considerava o tratamento tecnicamente mais recomendado, ficou evidente que a maior carência era de palavras mais adequadas.
Então criamos um curso de extensão cujo slogan é "Venha ouvir aqui o que não te contaram na faculdade".
O médico inexperiente, encantado com os prodígios da tecnologia, não percebe que, para o paciente, poder dispor de um celular na UTI é muito mais importante do que saber que o hospital tem um tomógrafo de última geração no subsolo.
Agora falando sobre o curso Medicina da Pessoa, que inspirou o livro: que lições o senhor nota que mais surpreendem os médicos e residentes que o frequentam?
A maioria dos temas foi selecionada por ser considerada indispensável no exercício médico e completamente negligenciada nos currículos da graduação. Por exemplo: como dar notícia ruim, a importância do toque humano, como convencer um paciente a fazer uma biópsia e a inteligência artificial na prática médica.
Poderia compartilhar como tem sido a experiência do curso?
Esse curso, que agora está entrando na quinta edição, conta com o respaldo acadêmico da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, através da coordenadora do curso de Medicina, a professora Maria Eugênia Pinto, e com o patrocínio e apoio logístico do Centro de Ensino e Pesquisa da Santa Casa, dirigido pelo professor Antonio Kalil. Tem o apoio formal de 42 das melhores escolas médicas do Brasil e nas quatro edições anteriores contou com cerca de 2,5 mil alunos matriculados.
Os 36 professores do curso são profissionais de reconhecida competência, praticando especialidades as mais variadas, com experiência didática, forjados nas melhores escolas médicas do Brasil e com larga trajetória na busca permanente de uma medicina mais humanizada. E que, provavelmente, fascinados pelo brilho no olho de quem aprende, se repetem anualmente como voluntários para oferecer um curso online e gratuito.
Uma pena que esse entusiasmo não seja atualmente compartilhado pelos gestores das nossas entidades corporativas.
Sobre a coletânea de crônicas O que se Faz por Amor, o senhor acredita que haja um tema ou ideia geral que atravesse todas elas?
Seguindo a tradição, o título do livro é o título de uma das crônicas, que trata da exigência emocional indispensável para a doação de órgãos, esse incomparável gesto de amor em que uma família sublima o sofrimento da sua própria perda para que uma família desconhecida seja poupada da dor que lhe vara o coração.
A tônica do livro é a discussão dos sentimentos humanos, muitos deles despertados pelo convívio com alguma forma de sofrimento, reconhecido ao longo do tempo, com um gatilho para exposição do que temos de melhor ou pior.
Nesses quase 14 anos de crônicas semanais, desde que aceitei a tarefa de ocupar o espaço do insubstituível Moacyr Scliar, me comprometi a tentar, dentro das minhas limitações, despertar nos médicos mais jovens o humanismo indispensável à pratica médica. Algumas das crônicas são uma espécie de prestação de contas desse compromisso.
Que critérios motivaram a escolha destas crônicas?
O critério de seleção mais importante para todas as crônicas foi conter alguma mensagem, humanística na maioria das vezes, e eventualmente um sentimento de indignação. Neste sentido, o mundo que vivemos é um fornecedor imbatível de atrocidades e grosserias. O relato de momentos inesquecíveis de conquistas pessoais e institucionais constituíram os elementos de clara compensação para as penúrias do dia a dia enfrentando as mazelas de um país pobre.