Mariana (o nome foi trocado a pedido da entrevistada), 18 anos, beijou um menino pela primeira vez quando tinha 13. Ficaria outras vezes com garotos até os 16, quando teve a experiência inicial com uma guria. Eram do mesmo colégio, estavam em uma festa, beberam um pouquinho, aproximaram-se. Aconteceu.
Avaliando depois o ocorrido, a adolescente pensou que poderia ter sido uma ousadia juvenil impulsionada pelo álcool, mas, em uma nova festa, meses depois, ela sentiu uma atração mais forte por outra menina. Nessa segunda situação, o desejo surgiu mais concreto, sem o toque de casualidade da anterior. Ao chegar, Mariana reparou na garota, achou-a bonita e atraente, e ambas deram início ali a um período de ficadas eventuais.
A partir desses episódios, Mariana deu-se conta de que estava relegando ao segundo plano o gênero de seus parceiros afetivos e sexuais. Concluiu que eram prioritários, para ela, a essência, as afinidades, o comportamento, o conteúdo do pretendente.
— Essa questão do gênero é uma limitação. Sou uma mulher, posso gostar muito de uma outra mulher, ter atração por ela, não só amizade, e aí eu me limitaria a não ficar com ela porque me imponho o fato de ser heterossexual, de só gostar de homem. Isso é uma repressão que você mesmo faz para você. Você se impõe esse pensamento de ter de se encaixar em uma só coisa, e acho que isso não faz muito sentido. Quando você cria uma conexão com uma pessoa, não é só o físico que importa. A essência me parece muito mais interessante do que o fato de ela ter nascido menino ou menina – reflete a estudante universitária.
Especialistas e os próprios adolescentes e jovens, hoje, classificam as novas gerações como mais experimentadoras do que as anteriores – e, sem dúvida, bem menos recatadas na hora de expor suas práticas e manifestar opiniões. Em uma turma de alunos de colégio ou faculdade, a guria que meses atrás namorava um colega e no final de semana trocou beijos e carícias com uma menina em uma casa noturna provavelmente não será a notícia mais comentada dos corredores na segunda-feira.
Essa questão do gênero é uma limitação. Sou uma mulher, posso gostar muito de uma outra mulher, ter atração por ela, não só amizade, e aí eu me limitaria a não ficar com ela porque me imponho o fato de ser heterossexual, de só gostar de homem.
MARIANA, 18 ANOS
Estudante universitária
Fernando Seffner, professor no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde coordena a linha de pesquisa Educação, Sexualidade e Relações de Gênero, destaca que as novas gerações estão se criando em um ambiente muito mais plural, no qual há um numeroso conjunto de identidades sexuais à disposição.
— É diferente da minha época, em que havia basicamente duas modalidades de gênero, ser homem e ser mulher, e duas possibilidades de ser: heterossexual, dominantíssima, e gay ou lésbica, esta muito apagada. Hoje o que existe é uma visibilidade gigantesca, não se limita mais à época do Carnaval. Ser gay, ser lésbica, ser queer, ser intersex, ser bissexual, ser transexual, há uma lista de possibilidades que não acaba mais. Temos, em alguns estratos juvenis, pessoas mais dispostas a experimentações – observa Seffner.
Psicanalista e escritora, Regina Navarro Lins vê na bissexualidade uma tendência a se tornar cada vez mais marcante. Mudanças de mentalidade, entretanto, tendem a se desenrolar de forma lenta e gradual, ressalta ela. Uma geração não concorda ou discorda sobre determinado tema da noite para o dia – há um período de transição em que convivem os precursores, que se libertam de conceitos e padrões obsoletos e vão puxando os demais, e os convencionais, que se agarram aos modelos de comportamento vigentes e mais bem aceitos, mas que são muitas vezes geradores de insatisfação e frustração.
— O novo assusta, dá medo, gera insegurança. Como os padrões de comportamento tradicionais não estão dando respostas satisfatórias, está se abrindo um espaço para cada um escolher sua forma de viver. As pessoas estão podendo escolher. Acho que a tendência é as pessoas dizerem exatamente isso: o que me interessa é o ser humano, eu me apaixono pela pessoa independentemente do sexo – pontua Regina, que acaba de lançar, pela editora Planeta, o livro Novas Formas de Amar – Nada Vai Ser como Antes: Grandes Transformações nos Relacionamentos Amorosos (leia entrevista em GaúchaZH).
Interessada por política, Mariana se identifica com as pautas da esquerda, gosta de assistir a filmes e a séries históricas e, na música, curte especialmente MPB. Procura alguém que se encaixe nessas preferências, além de ser uma pessoa de boa índole, progressista e alternativa. Esses pré-requisitos, garante a universitária, são mais importantes do que o gênero. Ela não se imagina mudando de postura:
— Não entendo como alguém pode gostar só de homem ou só de mulher.
O duplo estigma da bissexualidade
A bissexualidade e até a pansexualidade (categoria mais abrangente, em que se enquadra o indivíduo que se interessa também por transgêneros, por exemplo), caso de Mariana, não são fenômenos novos; estão apenas se tornando mais visíveis. Um dos motivos para isso, acredita Regina, é o relaxamento da censura. Ainda que sempre colida com um resistente conservadorismo, a ideia de que se deve aceitar as pessoas como elas são e tolerar a diversidade vem sendo mais difundida. Pense na época em que era obrigatório a mulher se casar virgem e que se considerava inadmissível a separação de um casal, ruptura que parecia amaldiçoar a família que então se desfazia. Os tempos mudaram, salienta a psicanalista:
— Você ser preconceituoso hoje é quase uma marca de ignorância.
Psicólogo e professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Angelo Brandelli Costa também pensa que o que tem se verificado é o aumento da projeção da bissexualidade. Em dado momento, explica Costa, as pessoas tiveram de se assumir heterossexuais ou homossexuais, e os bi, que não se enquadravam em nenhum dos grupos, sofreram preconceito, tachados de indecisos, dos dois lados.
— O paradoxo é que a bissexualidade choca todo mundo: tanto os homossexuais convictos quanto os heterossexuais. Os homossexuais, por exemplo, diriam: “Você precisa reforçar os nossos quadros, se dizer gay ou lésbica, e não se dizer bissexual”. E os héteros: “Você é uma pessoa confusa, atrapalhada, por que vai viver uma sexualidade que é tão cheia de preconceitos? É melhor ser hétero”. Era um duplo estigma. Mas me parece ter um arrefecimento dessa discussão agora – comenta Costa.
“E se a sua avó souber disso?"
Em sua breve trajetória afetiva, Gabriela Avila Ferreira, 19 anos, contabiliza ter ficado com mais meninos do que meninas. E já se diz segura quanto a sua bissexualidade e às características prioritárias que busca em uma relação: quer um companheiro ou uma companheira respeitoso, parceiro, amigável, engraçado, que goste de sair e também de ficar em casa, que aprecie conversar e conhecer pessoas novas. Homem ou mulher, não importa. A estudante do Ensino Médio tem gostado mais do toque – “As mulheres se conhecem” – e da predisposição das gurias para relacionamentos que perdurem por mais de uma noite. Solteira, ela tem aproveitado para sair com amigos, aberta às oportunidades que surgirem.
— Até meus 16, 17 anos, eu não sabia o que queria. Quando fiquei com uma mulher, pensei: “Nossa, sou sapatão”. A bissexualidade ainda sofre muito preconceito. Sou bissexual, gosto dos dois, mas sempre vai ter aquela pessoa que vai dizer: “Isso é uma fase, você está em cima do muro”. Ouço muito isso – conta a jovem.
Anos atrás, em um namoro assumido com uma menina da mesma escola, Gabriela e a parceira enfrentaram o preconceito de professores e o deboche de alunos: “Sapatonas!”, “Isso é falta de piroca!”, ouviam elas. Aguentaram com firmeza as provocações, mas não conseguiram vencer a resistência da mãe da outra menina, que forçou a separação. Em casa, a estudante também encontrou obstáculos. Parentes não queriam encostar em objetos que Gabriela tinha tocado. Ciente de que a filha havia estado com meninas, a mãe expressou seu desgosto fazendo referência à anatomia do corpo feminino e decretando que a filha deveria gostar de homens, a combinação natural e esperada para um relacionamento.
— Eu nunca vou te aceitar do jeito que você é. Muita gente não vai aprovar. E se o seu avô ouvir isso? E se a sua avó souber disso? Você vai me envergonhar na frente deles – lamentou a mãe.
Gabriela um dia tocou no assunto com o avô. Não estava saindo com ninguém, mas resolveu testá-lo:
— Vô, tô namorando uma menina.
— Mas o quê? Namorando menina? – reagiu ele, rindo. – O mundo está perdido!
Hoje Gabriela acha que a relação com a mãe, que declinou do convite para conversar com a reportagem de ZH, está melhor.
— Ela ainda reproduz um pouco o machismo e ainda é um pouco preconceituosa. Está em fase de desconstrução – avalia. – O preconceito da sociedade já me atingiu muito, sofri muito. Mas gosto dos dois (homem e mulher) 100% e era isso – conclui.
Para o psicólogo Costa, o que desestabiliza os pais é o componente homossexual da bissexualidade: imaginar o filho ou a filha transando com alguém do mesmo sexo. Idealizações típicas da maternidade e da paternidade quanto a aspectos da personalidade, da escolha da profissão, das conquistas pessoais e até da sexualidade estão sujeitas a frustrações – trata-se do embate entre o filho desejado e o filho real. É impossível, ou pouquíssimo provável, que todos os anseios dos pais sejam contemplados pela prole vida afora.
— Nada garante que o filho vai seguir o script. Os pais têm de aprender a lidar com essa frustração no sentido geral, em qualquer aspecto da criação. É claro que a sexualidade, como é um tema extremamente tabu e que envolve uma série de fantasias e preconceitos, leva sempre a uma frustração muito maior. Mas isso faz parte de ter um filho. A diversidade sexual faz parte da diversidade humana – reflete Costa.
"É o que a pessoa é. É o que a pessoa está ali, sendo"
Ralph Duccini, 25 anos, formando em Artes Cênicas pela UFRGS, relembra ter compreendido que gostava de meninos e meninas antes mesmo de dar o primeiro beijo. Ao longo da adolescência, dividiu-se entre os dois gêneros, com naturalidade.
— Eu tinha atração pelas pessoas. Tinha meninas de que eu gostava, tinha meninos de que eu gostava, e isso não me importava. Para mim, fazia muito sentido: eu gostava das pessoas por quem elas eram, independentemente de serem homens ou mulheres – recorda o universitário.
Quando Ralph se mudou do Rio de Janeiro para Pelotas, onde começou a cursar teatro, sua clareza de pensamento não impediu questionamentos e cobranças de amigos e colegas com quem convivia.
— Tá, mas você não é hétero, tem que se assumir gay.
— Quando é que você vai se assumir?
— Você fica com mulheres, mas “naquelas”, né?
— Ah, você está em dúvida.
Por um tempo, o garoto esteve seguro de sua bissexualidade. Atualmente, declara-se pansexual. Entre suas iniciações na área dos relacionamentos amorosos, começou um profundo processo de mudança – nascido menina, o estudante, hoje, é um homem transexual.
Já fiquei com outros homens trans, já fiquei com mulheres trans. O que me atrai é a pessoa, o conteúdo, a conversa, se os interesses batem.
RALPH DUCCINI, 25 ANOS
Formando em Artes Cênicas
Na transexualidade, há um desacordo entre o sexo de nascença e a maneira como a pessoa se percebe. Ralph assumiu o nome masculino aos 16 anos, submeteu-se a uma mastectomia total (retirada dos seios) e deu início à terapia hormonal com testosterona há cerca de três ou quatro anos. A mudança de sua aparência é notável.
— Já fiquei com outros homens trans, já fiquei com mulheres trans. O que me atrai é a pessoa, o conteúdo, a conversa, se os interesses batem. Sou muito ligado nessa questão de autoconhecimento, de conhecer o outro, se tem alguma coisa para acrescentar, para aprender, para compartilhar, se existe uma troca. Então não interessa se é homem, se é mulher, se é cis (cisgênero é, ao contrário de trans, quem se identifica com seu sexo de nascimento), se é trans. É o que a pessoa é, é o que a pessoa está ali, sendo.
Atualmente, Ralph está em um relacionamento estável e aberto com uma menina que combina com seus critérios de escolha. Ambos relatam, um ao outro, suas experiências com terceiros.
— Acho que é a melhor forma de lidar, até para não ter sentimento de engano, ofensa, mal-entendido. Conversamos normalmente: “Vi uma exposição muito bonita hoje, li um livro muito legal, fiquei com o fulano, fui na feira”.
O futuro do futuro
Além de acreditar que as pessoas, cada vez mais, escolherão seus objetos de amor pelas características de personalidade, e não mais pelo fato de serem homem ou mulher, Regina Navarro Lins também aposta em um futuro em que os indivíduos estarão interessados em relações múltiplas – uma mulher, por exemplo, terá mais de um namorado, sendo que cada relação sua terá particularidades e interesses próprios, mas todas elas, essencialmente, com o componente do amor. Conforme a psicanalista, o fechamento em uma relação a dois, monogâmica, perderá cada vez mais espaço, progressivamente.
Esses novos modelos, diz Regina, ocuparão o espaço que será deixado pelo amor romântico, fórmula que substituiu o casamento por interesse, na qual os casais geralmente eram arranjados por acordos entre as famílias. Turbinado pelo cinema de Hollywood, e impregnado, a partir daí, na cultura pop, o amor romântico, argumenta a especialista, sempre foi calcado na idealização, na ideia de fusão de dois seres apaixonados que se completam plenamente e na certeza de que nenhum dos parceiros sentirá desejo por outra pessoa. É um encontro de “almas gêmeas”, “a outra metade da laranja”, exemplifica.
— Os anseios contemporâneos renegam essa proposta, batem de frente com ela. Há hoje, por parte das pessoas, uma busca da individualidade. A grande viagem do ser humano atual se dá para dentro de si mesmo. Cada um quer saber qual é o seu próprio potencial a desenvolver. E o amor romântico prega o oposto: a fusão. O amor romântico não ter olhos para mais ninguém, é exclusivo. Quantas mulheres largaram o trabalho e os amigos por causa do marido? Então, o amor romântico, ao sair de cena, está levando essa característica básica, que é essa exigência de exclusividade. Está se abrindo espaço para outras formas de amar em que não haja exclusividade – sustenta a psicanalista.
Angelo Brandelli Costa, ao contrário de Regina, não acredita em um aumento da bissexualidade. O psicólogo espera que todos possam expressar livremente sua sexualidade e seu desejo, identificando-se da maneira que acharem melhor, sem sofrerem discriminação e violência psicológica e física ou terem de internalizar um modelo negativo que a sociedade muitas vezes manifesta, algo como “ser homossexual é ruim”:
— Os héteros dificilmente vão dizer quando foi o momento em que descobriram que eram heterossexuais. Não existe ruptura nesse processo, é algo natural, as pessoas simplesmente são o que são. E acho que o futuro também deveria ter essa naturalidade no desenvolvimento das pessoas que não são heterossexuais. Que elas não precisem ter de explicar e lembrar. Quando elas lembram e explicam, geralmente elas lembram e explicam os fatos negativos que vêm à tona.
GLOSSÁRIO
Heterossexual – Quem sente atração sexual por pessoa do gênero oposto – homens por mulheres e mulheres por homens.
Homossexual – Quem sente atração pelo mesmo gênero.
Bissexual – Atração por pessoas de ambos os gêneros.
Pansexual – Aquele que tem atração por outras pessoas de modo independente de seu gênero. As fronteiras da pansexualidade e da bissexualidade não são fáceis de traçar, podendo depender do modo como cada um procede ao dar curso à atração sexual.
Transexual – Quem se percebe com uma identidade de gênero diferente daquela que lhe foi designada ao nascer. Podem submeter-se ou não a cirurgias de redesignação sexual.
Cisgênero – Quem está confortável com a identidade de gênero que coincide com aquela que lhe foi designada ao nascer.
Travesti – Sujeito nascido biologicamente homem e que usa artifícios para se construir como mulher. A transformação, em geral, vem acompanhada do uso de hormônios e injeções de silicone. Via de regra, não faz cirurgia de redesignação sexual.
Drag queen – Alguém (normalmente um homem) que se veste de modo exagerado ou performático com roupas femininas, encarnando algum personagem de viés cômico.
Queer – Diz respeito a uma atitude de afrontar ou confundir as normas de gênero e sexualidade, denunciando seu caráter histórico, cultural e de poder. Às vezes o sujeito é homem, tem barba, mas usa vestido e passa batom. Gosta de viver na fronteira.
Intersexual – Pessoa que, por fatores genéticos, de conformação da genitália, por sua aparência física, pelo uso de roupas ou por combinações diversas desses fatores dificulta a identificação clara como sendo masculino ou feminino.