A Terra não é redonda nem plana. É um quadrinho, nas mãos de Guy Delisle, canadense de 53 anos radicado na França. Melhor dizer que ele é um cidadão do mundo, ainda que involuntário: ora por conta do seu trabalho em uma empresa francesa de desenhos animados (que terceiriza à Ásia etapas da produção), ora por conta do emprego da esposa, Nadege, administradora da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), ele – sozinho ou com a família – passou longas temporadas longe de casa. Foram três meses em Shenzhen, na China, e dois em Pyongyang, capital da Coreia do Norte, para supervisionar animações de TV. Durante 14 meses, morou com Nadege e o primogênito, Louis, em Rangum, a cidade mais populosa de Mianmar. Depois, já com a filha caçula, Alice, os quatro ficaram um ano em Jerusalém, capital de Israel.
Delisle transformou essas experiências em livros, todos lançados no Brasil pela editora Zarabatana Books, de Campinas (SP). Não espere laudatórios guias turísticos – afinal, seus destinos são países fechados, repressores ou envolvidos em conflito –, tampouco objetividade jornalística. Embora seja um humanista e defensor de ideais como liberdade, democracia e tolerância, o quadrinista não está lá para pregar, educar ou fazer política. Encarna nesse circuito asiático o viajante ocidental meio sem noção (a propósito, ele também é autor de uma série chamada O Guia do Pai Sem Noção), que estica o olhar para o pitoresco e o paladar para o exótico. É autocentrado (como acontece com muitos turistas, né?) e honesto com seus preconceitos (algo não tão usual) – a caminho de Jerusalém, comemora:
— Pelo menos vou ter uma folga dos países de Terceiro Mundo.
"Shenzen": uma viagem à China
Trata-se de uma cidade ao sul da China, localizada ao lado da cosmopolita Hong Kong e separada do resto do país por cercas elétricas, sob vigia de guardas armados. Isso porque foi a primeira região a ser declarada Zona Econômica Especial, ou seja, é uma espécie de bolsão capitalista no país regido pelo Partido Comunista. Não à toa, Shenzen tornou-se um lugar idílico para parte da população, evoluindo rapidamente de uma vila de pescadores para uma metrópole de 14 milhões de habitantes. "É a cidade que mais cresce no mundo: alguns prédios em construção sobem um andar por dia", comenta Delisle. O quadrinista emprega um estilo artístico mais sóbrio e escuro do que se vê nos demais livros, para ressaltar a cidade fria e impessoal que o recebeu. Com a experiência de quem antes havia visitado Nanquim, Cantão e Xangai, ele diz nas primeiras páginas: "Eu encontro o que já havia esquecido: os odores, o barulho, a multidão, a sujeira, o acinzentado por toda a parte".
Delisle constata um inesperado contraste: a proximidade com a modernidade não se traduz em uma quantidade suficiente de chineses bilíngues – "Felizmente, eu trouxe uma pilha de livros", ironiza. Uma das raras distrações é o Windows of the World, que apresenta versões miniaturizadas de grandes monumentos ocidentais,como as torres Eiffel, na França, e de Pisa, na Itália. Mas "fazer compras é o principal passatempo. Não há mais nada a fazer". A combinação de muita gente com visão mercantilista permite ao cartunista lapidar tiradas como esta: "O conceito de fila é bem impreciso. O menor espaço livre corre o risco de ser ocupado por alguém".
"Pyongyang": a cidade fantasma
A Coreia do Norte exerce encanto sobre o turista que gosta de ir na contramão: por que ser mais um em Paris se posso ser o único em Pyongyang? Visitar um dos países mais fechados e secretos do mundo tem seu charme, mas essa suposta exclusividade é obliterada nesse lugar onde, justamente, não há o culto ao indivíduo. Na verdade, existe apenas o culto a um indivíduo: Kim Il-Sung (1912-1994), o pai da nação, onipresente por meio de fotos em repartições públicas (ou seja, praticamente todos os endereços), distintivos, uma gigantesca escultura em bronze de 22 metros e seu filho e sucessor, Kim Jong-Un, que busca mimetizar o pai.
Uma a uma, Delisle destrói as potenciais atrações para os minguados visitantes. No restaurante do hotel Yangakkdo, a toalha de mesa está suja e molhada, e a comida vem nadando em óleo. À noite, a cidade fica às escuras, salvo pela luz de alguns monumentos. O museu internacional da amizade exibe 211.688 presentes de Estado, com o propósito de "convencer o povo de que o planeta inteiro reconhece a grandeza de seu adorado Kim", além de um boneco de cera para o qual militares e burocratas se curvam em reverência. No complexo esportivo, a demonstração de taekwondo foi cancelada, porque os atletas provavelmente foram obrigados a ir trabalhar nos arrozais. O enorme cinema só abre de dois em dois anos para um festival com filmes da Síria, do Irã, do Iraque e da Líbia. Trata-se de uma cidade fantasma, habitada por gente que demonstra "raros momentos de felicidade autêntica".
"Crônicas Birmanesas": calor, política e gafanhotos grelhados em Mianmar
A Birmânia a que o título se refere é o antigo nome de Mianmar, como o país do Sudeste Asiático passou a ser reconhecido pela ONU a partir de 1989. As crônicas narradas por Delisle transcorrem quando Suu Kyi, filha do herói nacional da independência (em 1949) dessa ex-colônia britânica, Aung San, e vencedora do prêmio Nobel da Paz, em 1991, ainda estava em prisão domiciliar. Ela permaneceu nessa condição por mais de 20 anos. Libertada em 2010, após forte pressão internacional (inspirou até música do U2, Walk On), hoje Suu Kyi é a primeira conselheira de Estado e, na prática, a líder política, que, ironicamente, enfrenta críticas da ONU por causa de supostas atrocidades cometidas, de 2017 para cá, contra a população muçulmana rohingya, minoria em uma nação budista. Ela chegou a perder um prêmio concedido pela Anistia Internacional.
No livro, Delisle descobre que a casa onde a ativista está confinada, em Rangum, fica perto da sua e chega a ensaiar uma visita, levando seu filho, Louis, no carrinho de bebê. O cartunista bola um discurso sobre encabeçar "uma revolta silenciosa e não violenta", e não deixa de apontar os problemas da junta militar que governa Mianmar - que convive com apagões de energia e censura à imprensa e à internet, por exemplo. Mas, no dia seguinte, Delisle já está envolvido em outros afazeres domésticos, em outras queixas sobre o clima de Mianmar ("É um lugar que tem a estação quente, a muito quente e a estação das chuvas"), outras observações sobre o cotidiano (desde o hábito de seus habitantes de mascar a noz de betel, que preteia os dentes, até a prosperidade do mercado de DVDs piratas), em descrições dos cenários e eventos típicos, como a Festa da Água, que assinalava o ano-novo budista, em provar iguarias como os gafanhotos grelhados.
"Crônicas de Jerusalém": uma cidade com três religiões
Vencedor do Fauve d'Or, o principal prêmio do prestigiado Festival de Quadrinhos de Angoulême, na França, este é o único relato com elementos coloridos e o único ambientado em um destino turístico mais habitual. Local sagrado para judeus, muçulmanos e cristãos, Jerusalém está no centro do conflito entre Israel e Palestina. Essa situação perpassa todo o livro, filtrada pelo olhar singular de Delisle. Em uma cena, por exemplo, ele retrata meninos palestinos brincando na rua com fuzis de plástico, presentes ao fim do Ramadã. "Eu não sei, mas, tendo em vista o contexto local, preferiria presentear com Lego", comenta o autor. Que não toma partido: mais adiante, vai ironizar os colonos israelenses que passeiam pelo zoológico com uma metralhadora a tiracolo: "Para o caso de serem atacados por um canguru!". A coda, no entanto, é amarga: "Todas essas armas... Acho que nunca vou me acostumar".
Entre a adaptação, o incômodo e o espanto, Delisle descreve particularidades de uma cidade com três religiões (o colégio onde estuda Alice é inclusivo, o que significa ter aulas apenas quatro dias por semana); sofre com o rigoroso controle nos aeroportos (devido ao medo de atentados terroristas); perde-se entre os bairros enquanto procura um parquinho com brinquedos (um modo nem tão sutil de destacar como a infância é tolhida na cidade); ironiza os judeus ortodoxos do bairro Mea Shearim ("Aqui, a moda parou nos anos 1930, mas isso não os impede de andar com o celular grudado na orelha"); comemora as escapadas a liberal Tel-Aviv ("sem quipás, sem mulheres com véu"); testemunha um momento de tensão, com bombas de gás lacrimogêneo sendo disparadas de um lado e pedras sendo jogadas do outro (mas sem perder de vista o surrealismo de um homem que, em meio ao tumulto, tenta vender seus pães com gergelim); comenta o episódio em que dois padres se estapearam durante uma celebração no Santo Sepulcro: "Os cristãos não conseguem dar um bom exemplo no meio deste conflito que divide o mundo inteiro há tanto tempo. É um pouco desesperador. Eu juro que, vendo o espetáculo que as religiões dão por aqui, não tenho vontade de ser crente".