No final de setembro de 2015, a repórter Letícia Duarte acompanhou a odisseia de uma família síria que, para fugir do horror da guerra, arriscou a própria vida. Na reportagem especial Refugiados – Uma História, Zero Hora mostrou a viagem de Ghazi, o pai, Razan, a mãe, e os filhos Tala, cinco anos, e Mohammad, três, do litoral da Grécia à fronteira da Áustria com a Alemanha, onde os Alissa buscariam um recomeço, longe dos bombardeios e das decapitações. Durante essa viagem de oito dias por sete países, Letícia procurou manter a isenção, a imparcialidade e a objetividade jornalísticas. Mas, como ela própria admitiu em um depoimento, acabou conquistada pela alegria que resistia ao frio, à chuva e ao cansaço e pela generosidade de uma “gente de alma grande, que ainda se preocupa com o outro, mesmo quando tudo o que lhes restou possa estar dentro de uma sacola de plástico”.
Poucos dias depois, em 1º de outubro de 2015, a britânica Kate Evans deu início a uma jornada semelhante, quase uma sequência possível para personagens como aqueles retratados por Letícia: a artista e ativista chegou à cidade portuária de Calais, na França, onde foi montado um enorme acampamento improvisado de migrantes e refugiados que desejavam cruzar o Canal da Mancha e tentar a sorte na Inglaterra. Formado por barracas e contêineres, sem saneamento nem segurança, o lugar tinha o apelido de A Selva. Os meses na companhia daquelas pessoas, a maioria vinda da Síria, do Afeganistão e de países da África, transformaram-se em uma história em quadrinhos, Refugiados – A Última Fronteira, publicada no Brasil pela editora DarkSide (tradução de Letícia Ribeiro Carvalho).
O cenário e as situações serão familiares aos leitores da reportagem de ZH, mas aqui inexiste toda e qualquer isenção e imparcialidade jornalísticas – Kate, ela própria voluntária e personagem, tem um objetivo claro: denunciar o descaso dos governos, a política de repressão e a rejeição pela sociedade. Autora de uma biografia em quadrinhos de Rosa Luxemburgo (1871-1919), um ícone do marxismo, Kate levanta a voz contra a primeira-ministra britânica, Theresa May, e a líder da extrema-direita francesa, Marine Le Pen, condena a brutalidade policial e a crueldade das milícias, contrapõe os depoimentos pungentes de vítimas de perseguição, violência e estupro em seus países de origem ao discurso de ódio, preconceito e mentira das redes sociais.
A quadrinista não poupa a ela mesma: em que pese suas boas intenções, retrata-se como tola, ingênua e privilegiada. Os dramas de seus filhos (“Você já está vestindo sua jaqueta fofinha?”, ela pergunta ao telefone para acalmar um deles) tornam-se absurdamente fúteis na comparação com as tragédias das crianças sem pai nem mãe. Em outra passagem, ao pintar o retrato da esposa de um refugiado, Kate elogia a beleza da mulher e afirma que ele deveria dizer isso a ela todos os dias.
— Meu marido me diz que sou linda toda vez que me vê. É o segredo para um casamento feliz. Quando você a viu pela última vez? — a retratista pergunta.
— Há seis anos.
“Seis anos”, repete Kate, como a dar, para si e para nós, a dimensão particular de um drama mundial.
A contundência de Kate não despreza a delicadeza. Pelo contrário: Refugiados é uma obra cheia de ternura – a toda hora a britânica é surpreendida por exemplos de esperança, solidariedade e bom coração – e de elegância gráfica. As bordas das páginas e as divisões dos quadros são ilustrados com desenhos de rendas (o livro traz inclusive um marcador de renda). Esse elemento decorativo atende a um triplo sentido.
Primeiro, faz uma referência a Calais, cidade célebre pela produção desse tecido. Segundo, casa com o conceito narrativo adotado, o das tramas que se cruzam em uma enorme tapeçaria, a da imigração (a propósito, o título original é Threads, que pode ser traduzido como fios ou linhas). Por fim, ilustra uma bandeira da autora, a de que as fronteiras entre os países tinham de ser mais permeáveis. As “linhas imaginárias que nós desenhamos”, como ela diz, não deveriam ser locais de dor e de morte, mas de troca e congraçamento. “Nós todos vivemos no mesmo planeta”, defende. Na geopolítica de Kate Evans, as armas são caneta, lápis e pincéis, as demarcações que importam são aquelas que, em uma folha de papel, dão rosto a quem não tem mais nada, o único muro a ser erguido é aquele que separa a arte da barbárie, e o sonho, da desesperança.