Circula de vez em quando entre os fãs de quadrinhos uma foto que mostra um homem de boné, em um trem lotado, lendo uma revistinha do Tex. Dependendo de quem a compartilha, a imagem simboliza uma coisa. Uns a veem como prova da resistência da mídia física na era digital, em que os celulares prevalecem – e, de fato, na cena, pelo menos três passageiros estão lidando com seus telefones. Outros valorizam a portabilidade da arte: podemos ir a qualquer lugar com um gibi, e um gibi pode nos levar a qualquer lugar – por alguns instantes, nos afastamos do estresse urbano e adentramos um território mágico.
Há quem diga que ela atesta a popularidade do personagem, um herói de faroeste criado há mais de 70 anos pelos italianos Bonelli e Galleppini, e do formato (de uma simplicidade franciscana diante de um mercado cada vez mais de luxo). Para mim, é uma metáfora visual dos colecionadores de gibis: vivemos em uma espécie de mundo subterrâneo, rodeados por gente que não sabe nem nunca saberá quem são Felipe Parucci e Jéssica Groke.
Nosso contingente é menor do que o nosso fanatismo sugere. Achamos que somos muitos porque o cinema de super-herói arrasta multidões, mas é bom lembrar que, segundo pesquisa do Ibope de 2016, 44% dos brasileiros não leem. Como usuário de transporte público, raras vezes deparei com a cena da foto, mas gosto de imaginar que, por trás dos uniformes cotidianos, escondem-se outros leitores de gibi. Temos essa necessidade de encontrar semelhantes, para nos mostrarem que não estamos sós na loucura. Evidentemente, não saio por aí perguntando às pessoas se elas leram o último Batman ou o novo Demolidor. Recorro ao refúgio dos tímidos e paraíso dos exibicionistas: o Facebook.
Participo de dois grupos que congregam colecionadores, o dos Pampas (cujo nome é autoexplicativo) e o 2quadrinhos (nascido do canal homônimo de um youtuber gaúcho). Este último já reúne mais de 15 mil integrantes, espalhados pelo país. Trata-se de um microcosmo para quem deseja nos conhecer e entender.
Os pecados nos guiam. A vaidade move aqueles que regularmente fotografam suas coleções ou suas novas aquisições (não falamos "compras", isso é para o supermercado: adquirimos gibis, incorporamos ao patrimônio). Isso desperta a inveja de outros, mesmo que tenham uma pilha de leituras atrasadas. A luxúria faz alguns gastarem fortunas em HQs lacradas que passarão o resto de suas vidas emolduradas, apenas para voyeurismo. Por gula, abrimos a carteira para qualquer edição luxuosa com capa dura e papel cuchê que aparecer. Por preguiça, fechamos os olhos àquele personagem ou autor do qual nunca ouvimos falar. A avareza nos impede de emprestar os quadrinhos e nos impele a protegê-los do sol, do pó e das mãos perigosas de sobrinhos. E a ira costuma reger as discussões: quem é melhor, DC ou Marvel? Alan Moore ou Grant Morrison?
Mas também praticamos a generosidade e exercemos a solidariedade. Eu mesmo já fui abençoado. Certa vez, um pernambucano me enviou mensagem. Sabendo do meu desejo de ter todos os gibis do Alan Moore e da minha dificuldade de encontrar os três volumes de Lost Girls por um preço que não fosse o de um Fusca, ele doou seus exemplares para mim: "Para pagar, faça algo semelhante, quando puder, por outro. Assim, espalhamos gestos de boa vontade, que é o melhor que podemos fazer. Estou bastante feliz por poder contribuir com seu objetivo".
O gesto mais lindo foi o do paranaense Eder. Seu relato serve como resumo das vicissitudes, da paixão e da camaradagem do mundo dos colecionadores. Em um mercado pequeno – a cidade onde mora, Colorado, tem 23,9 mil habitantes –, chegam às bancas poucos gibis, mesmo no caso de campeões de popularidade. Apenas dois exemplares de Tex Gold eram distribuídos na livraria que frequenta. Tinham donos certos: ele e um rapaz que não conhecia. "Como a atendente sabe que só nós dois compramos, ela já deixa separados no balcão, nem vão para a prateleira", contou Eder. Mas, em uma sexta-feira, havia um Tex Gold disponível na estante. O outro cliente morrera em um acidente de trânsito.
"A sensação de estar ali segurando em minhas mãos a revista que o cara viria buscar me fez refletir sobre a brevidade da vida, a fragilidade dos nossos projetos e o quanto as coisas que amamos e cuidamos podem, do dia para a noite, de um segundo para o outro, não ser mais nossas", escreveu Eder, que resolveu homenagear o desconhecido amigo colecionador. No dia seguinte, retornou à livraria, adquiriu a revista que seria do rapaz e descobriu seu endereço. A mãe, o pai e uma irmã receberam-no. Eder contou a história, chorou junto à família e pediu que guardassem com carinho na coleção do filho morto aquele último gibi do Tex.