Samantha Drago Vlassis tem na estante um finíssimo umidor de charutos branco com detalhes dourados. A caixa, avaliada em US$ 500 nos Estados Unidos, jamais recebeu qualquer Cohiba ou Montecristo. Apenas repousa na estante, acompanhada de uma armadilha para ursos em miniatura – usada também para arrancar mandíbulas humanas em sessões de tortura – e um delicado bibelô de cristal em forma de piano. Esses e outros itens que tomam conta de um cômodo da casa da advogada, em Porto Alegre, têm muito mais em comum do que aparentam. Na verdade, são a mesma coisa: embalagens de DVDs e blu-rays.
O luxuoso umidor que abriga o filme Scarface, as miniaturas referentes à franquia Jogos Mortais e o bibelô do longa-metragem O Pianista são algumas das 1,5 mil edições especiais que Samantha começou a reunir há 10 anos em uma simpática sala cor de cereja. Nos fóruns de internet dedicados a colecionadores, que ela visita em busca de novidades, a advogada é uma das poucas mulheres. Há uma outra peculiaridade: ao contrário deles, deu início a sua coleção quase sem perceber.
– Comecei a colecionar quando fui comprar um DVD do Mad Max para meu marido. Na mesma loja, vi uma edição digipack (embalagem com dobras) da trilogia De Volta Para o Futuro, achei bonita e comprei também. E fui voltando para adquirir os filmes de que gostava. Só percebi que tinha me tornado uma colecionadora quando faltou espaço na estante do nosso quarto – conta Samantha, 32 anos.
Ela já pensou em parar. Desiste da ideia sempre que entra na sala cereja:
– Quando penso em tudo o que podia fazer com o dinheiro que investi aqui, me questiono. Mas não consigo me desfazer. É como trazer pedaços da magia do cinema para dentro de casa. Não tem como largar.
A coleção de Samantha impressiona menos pelo volume do que pela exclusividade. Há fãs que reúnem duas ou mais dezenas de milhares de filmes. Os exemplares da advogada, além de escolhidos a dedo, são muitas vezes autografados por estrelas de cinema – ela tem caixas e caixinhas assinadas por diretores como George Romero (Despertar dos Mortos), John Carpenter (Halloween) e Dario Argento (Phenomena) e atores como Jamie Lee Curtis (Halloween) e Doug Bradley (Hellraiser).
São consumidores como Samantha que a indústria de entretenimento tem disputado para sobreviver ao tempo em que o acesso a músicas e a filmes por streaming é cada vez mais comum. Segundo o site The Numbers, que agrega projeções das maiores distribuidoras de DVDs e blu-rays americanas, houve queda de 45% das vendas em seis anos – de 81,3 milhões em 2009 para 44,7 milhões em 2015.
– O mercado vem de uma crise de muitos anos, mas está passando por uma transformação parecida com a que ocorreu com o vinil há alguns anos. Estamos nos aprimorando para os colecionadores, trazendo extras e criando uma experiência que o consumidor não poderá encontrar em um serviço de torrents ou vídeo on demand – sustenta Fernando Brito, curador da distribuidora Versátil.
Não é à toa que Brito cita a indústria do vinil como um modelo de recuperação para os DVDs. Com caprichadas reedições de clássicos e tiragens limitadas de lançamentos, o mercado nacional de discos cresceu 30% em 2015, segundo dados da fábrica Polysom. Mas nem todos os colecionadores se atraem por essa tendência. Com um acervo crescente de quase 10 mil CDs e cerca de mil LPs, o funcionário público André Kleinert não vê sentido em pagar um preço alto por um bolachão.
– O fetiche do vinil é muito elitista. Para comprar um disco novo, tem que pagar o dobro ou o triplo do que custa o CD. E acho que tem edições muito legais de CDs em termos de encarte. Além disso, a qualidade do vinil nem sempre é superior. Não há uma regra para isso – avalia Kleinert, 42 anos.
Kleinert recebeu a reportagem poucos dias depois de comprar um antigo volume em vinil que reunia serestas mineiras. A obra foi produzida pelo selo Discos Marcus Pereira, responsável por gravar os primeiros discos de artistas como Cartola e fazer compilações de músicas regionais. Ele não revela o valor pago, mas afirma que foi “bem razoável”:
– É algo que você não encontra em CD, então vale a pena. Porto Alegre tem lojas muito boas de usados com preços bem acessíveis.
O item mais valioso de sua coleção, diz Kleinert, é o vinil O Disco dos Mistérios... (1991), da banda mineira Sexplícito, que contava com o músico John Ulhoa e foi um dos embriões do Pato Fu. O preço não sugere que estamos diante de uma relíquia – no site Mercado Livre, o álbum pode ser adquirido em bom estado por menos de R$ 30.
– Valioso para mim é aquilo que me exigiu mais dedicação para achar. Depois de anos procurando, encontrei esse disco em uma loja em São Paulo. Foi o disco que mais me deu trabalho – explica Kleinert.
Ao contrário de Samantha, que chega a adquirir diferentes edições do mesmo filme por conta de embalagens distintas, o funcionário público descarta comprar um disco que já tem, a menos que o novo venha com boas faixas extras. Sua coleção vai com ele aonde ele for – Kleinert leva para o trabalho ou para os lugares que visita um discman (esse sim, quase um tesouro arqueológico).
– Ouço tudo o que tenho em casa – assegura.
Conseguir curtir tudo o que acumula não é a realidade de todos os colecionadores. Aos 85 anos, o bancário aposentado Claudio de Oliveira Koehler diz que jamais vencerá todos os livros que gostaria, mas nem por isso deixará de comprá-los. A biblioteca de sua casa reúne mais de 5 mil volumes de literatura, brasileira e universal. No dia em que ZH o visitou, havia recém adquirido um exemplar raro de Zé Limeira, Poeta do Absurdo, do paraibano Orlando Tejo, por R$ 264. Não começara a leitura, mas também relutava em guardá-lo na estante.
Koehler nunca trabalhou com literatura, mas os livros sempre foram úteis na sua vida. Durante o serviço militar, por exemplo, foi por meio deles que se tornou respeitado e popular. Aos 19 anos, cabo do Exército, despertou a curiosidade dos sentinelas pelas leitura ao longo das vigílias noturnas.
– Eles vinham me perguntar o que eu estava lendo, então comecei a ler para eles em voz alta. Eram, em sua maior parte, analfabetos. A coisa foi de tal forma que, quando anunciavam quem faria guarda com quem no final de semana, gritavam e vibravam ao ouvir meu nome – relembra.
Uma mania que mantém desde cedo – e que colabora muito para aumentar a coleção – é comprar todos os livros de um escritor quando gosta de alguma de suas histórias. É assim que mantém na estantes longas e ecléticas fileiras com as bibliografias de Tariq Ali, Stephen King, Anton Tchekhov e Rosemunde Pilcher. Os volumes nem sempre estão em ordem, e alguns se perdem e aparecem em outras estantes ou cômodos da casa.
– Isso é uma bagunça – assume, apontando para as prateleiras abarrotadas de brochuras e capas duras. – Às vezes, acho que não sou um colecionador, mas um acumulador. No entanto, sei mais ou menos onde está cada um dos livros. Pode demorar um pouco, mas os encontro – diz antes de começar uma busca pelo primeiro item da coleção, Winnetou, do alemão Karl May (1842-1912), que ganhou do irmão na adolescência. Não encontrou.
Provas de fogo
João Pedro Fleck, produtor e curador de mostras de cinema na Capital, estudou o comportamento de 37 donos de acervos de vinil para sua dissertação de mestrado em Administração. Conheceu colecionadores que podiam investir um quarto de todo o seu patrimônio material em um disco, chegando a adquirir volumes que custavam mais de R$ 25 mil.
– Eram caras que não se sentiam minimante arrependidos ou culpados por gastar na coleção. Ao contrário, uma parte deles se sentia culpada por gastar em outras coisas. Muitos, por exemplo, não frequentavam restaurante que custasse mais do que R$ 50 porque isso representaria deixa de comprar mais um disco – lembra Fleck.
O espaço costuma ser um fator mais determinante do que o dinheiro:
– Há quem pare de colecionar por estar ocupando um grande espaço de sua moradia com objetos que raramente consegue curtir. Essa decisão se fortalece quando o colecionador se casa.
André Kleinert tem seus CDs e vinis distribuídos em diferentes cômodos, separando os itens por gênero, conforme foi conhecendo cada um deles.
– O modo como organizo minha coleção conta uma história da música. Ela começa no quarto, com heavy metal e hard rock, que é geralmente o que o cara escuta quando passa a gostar de rock, e depois se espalha pela casa com country, blues, black music e outros gêneros – enumera.
O espaçoso acervo não é motivo de desavença com a mulher:
– Ela sabe que, se não tenho isso, não sou eu mesmo.
O casamento, bem como outros ritos de passagem, é uma prova de fogo para quem mantém grandes coleções. O antropólogo José Rogério Lopes, autor de estudos que relacionam colecionismo e ciclos de vida, observa que as coleções muitas vezes servem como um modo de crianças e jovens interagirem e incorporarem padrões de organização e hierarquia prevalecentes na sociedade. A chegada da vida adulta demanda novas interações, desta vez dedicadas ao trabalho e a relacionamentos amorosos, e, aí, é comum que muitas coleções cessem.
– Para que a coleção continue, muitas vezes é preciso que o colecionador encontre outro significado para ela – afirma Lopes.
Entre os possíveis novos significados, podem estar a busca por algum sentido de permanência, mantendo objetos que poderiam ficar no passado próximos de si, e o encontro com pessoas que têm as mesmas afinidades. Kleinert encontra semanalmente vendedores e outros colecionadores que já o conhecem pelo nome e sabem seus gostos. Samantha deixou de frequentar lojas físicas de DVD e compra atualmente apenas pela internet – mas decidir junto ao marido o próximo item ou a melhor forma de organizar o acervo é um programa que aproxima o casal e colore o cotidiano cansativo do trabalho.
Dono de uma coleção de 30 mil revistas em quadrinhos, o funcionário público aposentado Paulo Ricardo Abade Montenegro, 57 anos, também mantém relações de amizade com outros colecionadores – e, antes do Natal, os reúne para um amigo secreto em sua casa. Os armários repletos de gibis, que ocupam um quarto de hóspedes no qual só a cama foi poupada, são um repositório do mercado brasileiro desde 1984, quando Montenegro começou a fazer rondas semanais por bancas e lojas especializadas, levando quase tudo o que achava pela frente. Com organização impecável, ele atualiza frequentemente uma planilha no computador, que pode ser acessada pela internet, como faz quando esbarra em algum gibi raro durante uma viagem, mas não tem certeza se já o tem no acervo.
Até 23 de março, Montenegro contava com 30.569 revistas. Entre as maiores séries, estavam 1.201 exemplares de Pato Donald, 1.174 de Zé Carioca, 585 de Tio Patinhas e 556 de Tex. Ele possui milhares de revistas de super-heróis como Batman, Superman, Homem-Aranha e X-Men, mais difíceis de quantificar porque passaram por diferentes editoras. Entre as raridades, estão 2.134 edições de diferentes revistas da cultuada Editora Brasil-América Ltda. (Ebal), que funcionou entre 1945 e 1995.
Uma cristaleira na sala de estar chama a atenção dos visitantes por suas centenas de gibis: é a “fila de espera” para leitura do colecionador, que já não guarda mais esperança de ler tudo o que compra.
– Hoje, tenho certeza de que gosto mais de ter do que de ler – brinca Montenegro.
Se o cuidado para deixar a coleção atualizada é grande, a vigilância é maior ainda para não perder itens. Montenegro não os empresta para ninguém além de familiares – quando seu pai era vivo, só deixava suas edições de Tex com ele mediante recibo.
Koehler é mais desapegado. Emprestar não é um grande problema, mas há uma condição importante: ao devolver, o leitor precisa deixar um breve comentário na última página do livro. Não precisa ser uma resenha aprofundada, um “muito bom” ou “enredo envolvente” bastam. O que não pode é não deixar marca alguma ao final da leitura.
Os entrevistados nesta reportagem sabem que a maioria das pessoas não nutre a mesma paixão pelos itens que guardam. Os quatro colecionadores também não têm a ilusão de conservá-los para a posteridade.
– Brinco com a minha mulher que minha coleção será minha herança, mas é claro que precisa ser avaliada por quem entende de gibis – diz Montenegro.Kleinert sequer considera a possibilidade de que seus discos tenham valor no futuro. Para ele, é apenas no presente que a coleção pode ser fruída:
– Daqui a alguns anos, a tecnologia vai avançar e tornar todo esse acervo ainda mais obsoleto. Quando tiver um filho, quero apresentar estas coisas para ele, que talvez aprenda a valorizá-las. Mas, no fundo, sei que tudo isso só faz sentido para mim.