A II Guerra Mundial extrapolou o conceito de catástrofe não natural. O Holocausto tornou-se o símbolo do que o homem pode fazer de mal ao homem. O genocídio do povo judeu, a crueldade de Hitler, a adesão, a complacência ou a covardia das pessoas que podiam se interpor entre uns e os outros impregnaram de tal forma a civilização ocidental que não precisamos dar nomes nem rostos para reconhecê-las: em momento algum O Relatório de Brodeck informa ao leitor a época e o cenário da HQ, tampouco fornece nacionalidade, etnia ou religião dos personagens. O aspecto fabular amplifica o poder da narrativa e de sua mensagem – a serpente está sempre à espreita.
Publicada com o esmero gráfico da editora Pipoca e Nanquim e assinada pelo francês Manu Larcenet, O Relatório de Brodeck é a adaptação em quadrinhos do romance homônimo de um compatriota seu, o escritor e cineasta Philippe Claudel. São dele os filmes Há Tanto Tempo que Te Amo (2008), sobre uma mulher (Kristin Scott Thomas) que, após 15 anos na prisão, tenta refazer a vida na companhia da irmã caçula, e Antes do Inverno (2013), em que um neurocirurgião casado há 30 anos (Daniel Auteuil) começa a receber flores anônimas e reencontra uma jovem ex-paciente. Ambos os longas têm características vistas em Brodeck: a construção pacienciosa da mistura de drama psicológico com suspense, o escrutínio de um episódio traumático, o desnudamento das máscaras que os personagens vestem. Ao verter o romance vencedor do prêmio Goncourt de 2007, Larcenet, ele próprio um quadrinista laureado (Le Combat Ordinaire foi o melhor álbum no Festival de Angoulême), não ficou refém da palavra: intercala sequências mudas com a narrativa mais textual. Aliás, nas cinco primeiras páginas, não há falas; apenas o chiaroscuro do traço, que estabelece o tom e a densidade do que está por vir.
Brodeck, o protagonista e narrador, é o escrivão ambiental de uma aldeia inominada. Seu trabalho consiste em fazer breves anotações sobre o estado das florestas, das estradas e dos rios. Certa vez, ao chegar a uma estalagem, Brodeck descobre que os moradores cometeram um crime e é incumbido de relatar o caso.
– É preciso que aqueles que lerem o seu relatório compreendam e perdoem – pede um dos aldeões.
O escrivão empreende uma jornada interior e uma investigação de campo, que vai revelando os eventos que culminaram no Ereigniês, termo no dialeto local que designa “aquilo que aconteceu” – O Relatório de Brodeck procura entender como as atrocidades do nazismo foram permitidas.
– Um ou dois homens não conseguiriam fazer isso, Brodeck – afirma um personagem diante do corpo de um cavalo enforcado. – Foi obra de muitos.
Essa é a ferida da humanidade que Claudel e Larcenet expõem e cutucam, com um misto de brutalidade e poesia. A inteligência e a contundência estão em adotar a atemporalidade e a imprecisão geográfica: aquilo que aconteceu pode acontecer de novo.
Os animais vistos nas paisagens percorridas por Brodeck simbolizam a natureza selvagem do homem: somos presas e predadores, acuados pelo medo e premidos pelo instinto de sobreviver. Os personagens que compõem a aldeia são todos parecidos entre si, simbolizando a coletividade da culpa. Os militares que impõem a “purificação” – a denúncia, o expurgo ou a execução dos diferentes – não são símbolos, mas o retrato do mal: ostentam um rosto descarnado, monstruoso.
A fauna é um espelho. Ao descrever os porcos, o prefeito Orschwir está falando de seus cidadãos: “Eles são verdadeiras feras. Só se importam com o que vão ter na barriga. Poderiam engolir seus próprios irmãos. Eles não pensam. Não conhecem nem remorso nem o passado. Contentam-se em viver”.
Essas palavras ecoam nas do Komdant, o comandante invasor abraçado pela comunidade, ao analisar borboletas: “Quando tudo está bem, a presença de indivíduos estranhos não as incomoda. Mas, quando surge um perigo que ameaça a integridade de seu grupo, sacrificam aquelas que não são parte dele”. Brodeck é o protagonista e o narrador, mas há um coadjuvante que tem um papel tão ou mais importante: é o Anderer, “o outro”, forasteiro que se hospeda no vilarejo. O escrivão da aldeia encarna a memória, a necessidade de lembrar e de contar, como um alerta para que erros e crimes não sejam repetidos. O Anderer personifica a consciência. À certa altura, o prefeito quer saber por que veio visitá-los, eles que estão longe de tudo.
– Exatamente... – responde o Anderer. – Eu queria ver como vivem os homens que estão longe de tudo. Longe do aparato do Estado, como nos comportamos? Longe dos olhos dos outros, como agimos? Que animal somos, o coelho ou a raposa?
O Anderer pinta retratos dos aldeões, e a exposição causa revolta: “Seus quadros refletiram o verdadeiro eu das pessoas. Ninguém gosta de saber que é um monstro”.
O Anderer é a réstia de civilização em uma comunidade que, em nome da própria sobrevivência, matou aquilo que nos separa dos animais. “Como um guarda noturno assustador, ele vinha recordar a todos o que eles haviam feito, ou que não quiseram impedir.”