Um saci mais ameaçador do que a figura até simpática apresentada nos livros escolares estampa a capa do livro Lendas. Ao seu lado, outro mito folclórico do Brasil, o Curupira. Ambos são retratados com uma boa carga de terror pelo desenhista Ivan Reis, paulista que atualmente assina o traço de histórias em quadrinhos do Superman.
Lendas é um projeto que nasceu para ser portfólio dos artistas de todo o país que integram o quadro de agenciados do estúdio virtual Chiaroscuro. Mas a iniciativa foi ganhando maior proporção até virar um volume com pretensão didática.
Com lançamento previsto para este mês de janeiro na plataforma da Amazon, ao valor estimado de R$ 90, Lendas vendeu 200 exemplares na Comic Con Experience (CCXP), grande evento voltado à cultura pop realizado em dezembro, em São Paulo. Entre os fãs que pediam autógrafos aos 40 artistas presentes no estande de divulgação (ao todo, são 61 profissionais envolvidos), havia professores que garantiam que o livro ilustrado seria trabalhado em sala de aula para mostrar aos estudantes como a origem de cada figura folclórica conta um pedaço da história do Brasil.
Após seis meses de pesquisas em uma bibliografia que reúne de autores contemporâneos, como Januária Alves, a registros históricos, como a Carta de São Vicente 1560, escrita pelo jesuíta espanhol José de Anchieta (1534-1597), o projeto foi lançado para financiamento coletivo no site Catarse. Com a meta de arrecadar R$ 25 mil para a produção, encerrou as doações em novembro com 355% a mais do que o almejado.
Resultado financeiro surpreendeu autores
Idealizado por Ivan Costa e Joe Prado, sócios do estúdio Chiaroscuro e da CCXP, com consultoria e redação do pesquisador e jornalista Yuri Andrey, Lendas é o terceiro volume anual da Chiaroscuro – e o primeiro a surpreender com seu resultado financeiro.
– Outros projetos (de outras empresas) que estavam no Catarse arrecadaram valores muito inferiores. Alguns chegaram a cancelar por dificuldade em viabilizá-los este ano – destaca Costa.
Costa e Andrey explicam que a atribuição de cada lenda a seu respectivo artista se deu por proximidade com o tema. A Princesa Encantada de Jericoacoara, por exemplo, ficou sob os cuidados do cearense José Luís, assim como o gaúcho Daniel HDR tocou a produção de Negrinho do Pastoreio, lenda típica do Rio Grande do Sul.
– Colocamos as principais (narrativas). Algumas são menos famosas no Brasil porque são regionalizadas – explica Andrey.
Um rascunho com informações e imagens de cada personagem foi encaminhado aos artistas, para que enviassem os primeiros esboços à avaliação dos organizadores.
– Não é uma versão de super-herói do Saci ou de super-heroína das Amazonas, são personagens seguindo a descrição tradicional de cada lenda – diz Costa.
Percebe-se, em Lendas, uma diversidade de influências, como a de certa vertente das HQs americanas, que surgem principalmente na representação de estereótipos do corpo feminino. Há interpretações inventivas, como a lenda Carbúnculo, produzida pelo paulista Marcelo Costa, que lembra os monstros do escritor de terror e ficção científica H. P. Lovecraft (1890-1937). E também Anhangá, criada pelo goiano Rodrigo Spiga, apresentando o personagem em um traço que remete ao do desenhista Rafael Grampá, gaúcho internacionalmente consagrado com trabalhos como 5 (2007) e Mesmo Delivery (2008).
Desconstrução da Cuca
A artista gráfica gaúcha Cris Peter, reconhecida por seu trabalho na colorização de quadrinhos, área em que foi indicada ao prestigiado Prêmio Eisner em 2011 (por Casanova: Avaritia e Casanova: Gula, de Matt Fraction), é uma das três mulheres no projeto Lendas, ao lado de Adriana Melo e Natália Marques.
Agenciada pelo estúdio Chiaroscuro, Cris foi responsável por dar forma à figura da Cuca. Encontrou dificuldades na busca por referências visuais diferentes daquela consagrada pelo O Sítio do Picapau Amarelo.
– Não queria desenhar um crocodilo de peruca – brinca.
Depois de pesquisas no Pinterest (rede social de compartilhamento de imagens), a artista produziu, em dois dias, um desenho econômico em detalhes, que utiliza recursos do design gráfico e cores chapadas, uma variação do imaginário comum descrito pelo antropólogo e escritor Luís da Câmara Cascudo (1898-1986).
Ao descrever sua criação, Cris explica que queria uma representação fora do padrão do corpo feminino. Mesmo tendo um formato “cheinha”, a Cuca não deixou de ser sexy.
– Imagino que esse tipo de trabalho ajudará a dar uma atualizada na Cuca e colocá-la na internet. Se não está na internet, não existe – afirma Cris.