O ilustrador, professor, desenhista e roteirista de histórias em quadrinhos Marcelo D'Salete, 39 anos, teve seu trabalho Cumbe (Veneta, 2014, relançado em 2018) reconhecido com o Prêmio Eisner, considerado o "Oscar dos quadrinhos", na categoria de Melhor Publicação Estrangeira nos Estados Unidos - Run for It (na versão em inglês publicada pela Fantagraphics, 2017). O livro já havia sido indicado ao 27º Troféu HQ Mix 2015.
Mestre em História da Arte pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de Artes Plásticas na educação básica, Marcelo se une aos outros brasileiros vencedores do prêmio, Fábio Moon, Gabriel Bá e Rafael Albuquerque.
A publicação é derivada de uma pesquisa pessoal sobre o processo colonial, revoltas, lutas e cultura da população negra escravizada no Brasil. O estudo se estendeu por uma década, tendo início em 2004, a partir da vivência de um curso sobre o tema e a leitura de livro sobre Palmares, e rendeu um segundo título em 2017, Angola Janga, vencedor do 60º Prêmio Jabuti, do Grampo de Ouro 2018 e 30º Troféu HQ MIX 2018.
Enquanto Cumbe retrata a resistência dos negros no Brasil colonial contra a violência da escravidão por meio de histórias diferentes do ponto de vista dos escravos que lutam contra o sistema opressor, Angola Janga aborda conflitos, dramas e esperanças de Palmares.
Marcelo conversou com GaúchaZH:
Recebeu algum tipo de auxílio financeiro no período da pesquisa?
Eu comecei a produzir esses livros muito por interesse próprio de desenvolver narrativas em formato de ficção, que eu gosto muito, além de histórias em quadrinhos, isso desde Noite Em Luz (2008), passando por Encruzilhada (2011), Cumbe e Angola Janga. Recebi apoio para a publicação desses livros somente no final. No caso de Cumbe e Angola Janga no último ano de produção, então, já estava realizando o trabalho há muito tempo.
O que planejava fazer quando começou o estudo?
Eu comecei a produzir em 2004, quando tive as primeiras leituras falando sobre o período colonial. Aos poucos, essas pesquisas levaram a mais livros e pensei que seria importante desenvolver algumas narrativas para contextualizar o leitor no período colonial, falando desses africanos que viviam na região do Combe, em Angola, um pouco de seus traços culturais. Depois, observei que seria interessante separar os dois livros. Cumbe tratando do período colonial e da questão da escravidão a partir da perspectiva negra. De um outro conjunto de histórias, surgiu Angola Janga, que é especificamente sobre a saga de Palmares.
Como foi para decidir o que seria material de Cumbe e Angola Janga?
Inicialmente, pelo menos três narrativas de Cumbe fariam parte de Angola Janga. No meio do processo, resolvi separar um livro do outro, porque eu vi que Cumbe era um livro que tinha um interesse, uma energia própria e poderia ser publicado desse modo. Para minha surpresa, isso foi muito positivo. Outros leitores perceberam essa energia e consideram que o Cumbe tem características próprias para além de Angola Janga.
Por meio dos glossários, mapas, fica clara a tua preocupação com a história, qual legado imagina deixar para as próximas gerações?
O glossário foi algo que eu pensei bem se deveria acrescentar ou não, mas o que acontece é que o meu modo de contar a história em quadrinhos é bem pessoal, do jeito que eu gosto de ler. Não é muito didático. É algo que exige do leitor atenção em relação a diversos elementos que aparecem, passagem de tempo, os personagens. Gosto de dar uma certa relevância para a questão do desenho, para a imagem. Senti que muito do que eu tinha pesquisado estava nos detalhes, mas o leitor, em geral, não acessaria aquele tipo de informação facilmente. Então, achei por bem fazer o glossário, textos, prefácio, colocar mapas falando um pouco desse ambiente, um pouco desse contexto, falando um pouco dessa pesquisa, porque grande parte dos livros de história que falam sobre esse período ainda são razoavelmente inacessíveis para o grande público. O que eu tentei fazer é dar algumas dicas para que o público leigo também possa se aproximar dessas histórias e desse conhecimento do nosso passado.
Fazendo um paralelo entre as aulas de História da escola e o que identificou ao longo dessa década de pesquisa, tem pontos importantes que deveriam ser estudados por outra perspectiva?
Eu venho de escola pública. Estudei a minha vida toda em colégios públicos na Zona Leste de São Paulo. Poucas vezes ouvi referencias a Palmares ou a resistência negra no período colonial e imperial. Só fui ter acesso já na universidade e considero que esse é um tipo de ensino que precisa vir para o Ensino Fundamental. Lendo e pesquisando mais sobre isso observei que muito sobre rebeliões, formas de resistências, mesmo dos povos indígenas, principalmente do século 17 e 18, são importantes conhecermos. Dizem respeito à nossa história e mostra como foi um processo e continua sendo extremamente violento. Temos que conhecer mais sobre isso, romper com essa ideia de passividade e harmonia da nossa história. Nos diversos grupos sociais que estiveram aqui, que na verdade, não, a nossa história é marcada por massacres, lutas constates e uma extrema violência. Precisamos compreender mais sobre isso, até para romper com esse ciclo de violência que permanentemente aflora na nossa sociedade, no passado e no presente. Esse tipo de narrativa é muito importante para combater narrativas conversadoras que não conseguem compreender nosso momento atual, narrativas que às vezes acabam repercutindo e atualizando discursos racistas e discriminatórios contra pobres, negros e indígenas. É mais do que urgente combater esse tipo de narrativa por uma forma de ver a nossa história em sociedade atual de um modo mais complexo e pensando na participação e na presença desses vários povos aqui no Brasil.
Em relação a tua família e educação escolar, existiam conversas sobre preconceitos raciais, escravidão, movimento negro? Como que foi tomando consciência sobre esses temas?
Minha família não é uma família de militantes, não é uma família de pessoas que vieram de uma trajetória política, eram trabalhadores. Minha mãe trabalhando em creches, meu pai era eletricista, trabalhando em empresas da região de São Bernardo. Eu fui ter contato com essa discussão de uma forma politizada na adolescência a partir da literatura, da música principalmente do rap (por volta dos anos 1980). Isso foi o que me influenciou para me formar politicamente. Onde eu morava, São Mateus, essa discussão não chegava. Era comum ouvir de tios e outras pessoas falas extremamente preconceituosas e racistas. A crítica disso, o incomodo com esse tipo de fala, eu só consegui elaborar muito tempo depois.
O Brasil precisa lutar contra a desigualdade, que é um mal, uma chaga, uma cicatriz que a gente ainda tem do período colonial e até hoje não foi resolvida. A gente continua governando para uma parcela muito pequena da sociedade. Tem que romper com esse ciclo. Precisamos lutar contra a desigualdade que está instaurada e para isso é mais do que importante combater essas pautas conservadoras que estão postas nesse momento na política brasileira.
MARCELO D'SALETE
Quadrinista
Gostaria de indicar outros livros, HQs, animações que valorizem e/ou debatam questões do movimento negro?
De filme gosto muito de Gillo Pontecorvo, do filme Queimada! (1969), excelente para falar sobre Brasil colonial, para falar sobre a América Latina, revoltas e revoluções. Aprecio muito autores africanos como Ousmane Sembene, Mahamat Saleh Ourum e outros autores interessantes para pensar uma África contemporânea e das últimas décadas. Nos quadrinhos, tem o livro Carolina (2016), de João Pinheiro e Sirlene Barbosa, sobre a Carolina de Jesus. Tem diversas produções de André Diniz, Marcello Quintanilha, André Toral, Laerte, Rafael Coutinho, Miguel Sanches Neto e Carlos Patati, com Couro de Gato: uma História do Samba (2017), com uma perspectiva de diversas populações que tiveram no Rio de Janeiro no início do século 20, dessa mistura cultural. Vale a pena conhecer. Enfim, tem uma produção bem interessante tratando desse tema.
Sobre Eisner, tu foste para Comic Con receber o prêmio?
Quando recebi a notícia do Eisner, estava aqui em São Paulo, voltando de uma viagem pelo Brasil. Não cheguei a ir para a ComicCon. Viajar para a Califórnia é bem caro nessa época do ano. Mas espero estar presente em outro momento para falar desses livros. Cumbe teve uma repercussão muito grande no Brasil e fora. Penso que isso tem a ver com as histórias que ele trás e a necessidade das pessoas hoje lerem mais dessas histórias contadas de formas diferentes.
Sobre o Jabuti, a categoria de Histórias em Quadrinhos nesse prêmio é muito recente, o que representa para ti emplacar o Angola Janga na história da premiação?
Considero importante para chamar a atenção para os quadrinhos, para trabalhos interessantes de quadrinhos que estão dialogando com o público juvenil e adulto e para vários autores que merecem ser conhecidos dentro dessa área. É o reconhecimento de uma cena, da qualidade de uma produção muito alta aqui no Brasil nos últimos anos. Considero que essas premiações são resultado de um trabalho que reflete um momento histórico cultural. O meu desejo é que essas premiações chamem a atenção para esse tipo de narrativa sobre a nossa história e sobre essa perspectiva negra para que a gente tenha ainda mais obras tratando desses assuntos por outros artistas.
Gostaria de falar sobre o atual momento político?
Estamos em um momento político bem delicado, de crise realmente. É no mínimo um retrocesso. Ouvimos discursos machistas, sexistas, racistas sendo propagados por um candidato à presidência e seu vice. É inadmissível que esse tipo de fala seja aceita pela população. Fala que defende tortura, morte de presos, de que não deve haver oposição. É algo absurdo, é algo aterrador, realmente retrógrado em relação ao nosso momento atual. Agora penso que é um momento importante também para que a população organizada faça oposição frente a esse tipo de fala. O Brasil precisa lutar contra a desigualdade, que é um mal, uma chaga, uma cicatriz que a gente ainda tem do período colonial e até hoje não foi resolvida. A gente continua governando para uma parcela muito pequena da sociedade. Tem que romper com esse ciclo. Precisamos lutar contra a desigualdade que está instaurada e para isso é mais do que importante combater essas pautas conservadoras que estão postas nesse momento na política brasileira. A população negra, indígena e pobre que sobreviveu a processos de genocídio, de matança desenfreada, de uma violência desmedida e claro que mais uma vez vai mostrar a sua força diante de pessoas que demonstram não estar minimamente interessadas ou preparadas para esse tipo de posição e muito menos governar de fato para todos os brasileiros. É preciso resistir a esse tipo de investida.