Entre as lendas que circulam a respeito de Che Guevara, uma conta que, após abandonar Cuba em 1966 para implantar focos revolucionários em outros países, ele teria passado pela América do Sul fantasiado de padre. A busca pela Bíblia usada para compor o disfarce – na qual Guevara teria feito anotações enquanto lia o Novo Testamento – é o pretexto para a trama de A Bíblia do Che, novo romance do paranaense Miguel Sanches Neto. Mas o que o autor realmente faz é usar a moldura de um suspense para uma abordagem satírica da recente confusão política no Brasil.
Para isso, retoma Pessoa, protagonista de A primeira mulher (2008). Depois da trama daquele romance, esse ex-professor de idade avançada passou uma década vivendo precariamente em Curitiba, morando irregularmente numa sala comercial, lendo compulsivamente e sendo econômico nos deslocamentos. "Por 10 anos, vivi sem me afastar mais do que mil metros de meu prédio", reforça. Essa existência mais monomaníaca do que monástica é abalada quando um antigo conhecido, o operador financeiro corrupto Jacinto, o encontra e oferece uma grana para que ele encontre a Bíblia usada por Che numa suposta passagem por Curitiba. Logo Jacinto é morto em uma queima de arquivo, e a busca de Pessoa passa a ser outra: quem teria matado o operador e pode querer fazer o mesmo com sua mulher, uma femme fatale obcecada pelo socialismo.
Os métodos usados pelo Pessoa investigador desde sua primeira aventura não melhoraram muito em 10 anos de isolamento, primando por uma certa aleatoriedade que é ela própria uma sátira do autor às chances de um detetive "fora do sistema" descobrir alguma coisa em um país de corrupção tão entranhada como o Brasil. É o caso que praticamente vem ao detetive, e não o contrário, e nesse processo Pessoa tromba com elementos que se associam ao recente noticiário político: negociatas, delações premiadas, a derrisão de projetos da esquerda (inclusive Cuba como modelo). São ideias interessantes, e há bons insights sobre o Brasil como um cenário de pulp falsificado. E, ao avançar a trama, o tom de pastiche justifica coincidências ou desenvolvimentos apressados. Mas, em certas passagens, esse mesmo tom retira do protagonista, nosso narrador e personagem que reorganiza o que está vendo para nós, leitores, uma profundidade que, mais do que bem-vinda, seria necessária. (CARLOS ANDRÉ MOREIRA)
A BÍBLIA DO CHE
Miguel Sanches Neto
Companhia das Letras, 288 páginas, R$ 49,90 (impresso) e R$ 34,90 (em e-book).
PRATELEIRA - dicas de lançamentos
O peso da gravata
Menalton Braff, ganhador do Jabuti de Livro do Ano em Ficção em 2000 pelos contos de À sombra do cipreste, volta à narrativa curta com este volume. A obra reúne 18 contos que, apesar de se valerem de uma dose de fantástico, tiram muito de sua força da relação entre os personagens e o espaço, principalmente o espaço urbano. Em um dos contos, o protagonista morto caminha até sua sepultura. Em outro, o centro da história é um sobrado degradado. Em outro ainda, um condomínio é invadido. Primavera Editorial, 176 páginas, R$ 24,90
Heidegger ou as vicissitudes da destruição
Este é o primeiro volume de uma trilogia planejada pelo psicanalista Roberto B. Graña sobre as relações entre filosofia e psicanálise. Fruto de uma tese de pós-doutorado orientada por Elisabeth Roudinesco, a obra discute as observações de Heidegger sobre a psicanálise. O lançamento está marcado para a próxima quinta-feira, a partir das 18h30min, no Salão Mourisco da Biblioteca Pública do Rio Grande do Sul, com debate com a participação do autor, de Ariane Severo e Donaldo Schüler. AGE, 197 páginas, R$ 58
As reformas políticas dos homens novos
Historiadora e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Gizlene Neder reconstitui neste livro a atuação dos “homens novos”, um grupo de jovens políticos e juristas do Brasil Império, entre eles Nabuco de Araújo (avô de Joaquim Nabuco, que o retratou em Um estadista do império) e José Maria da Silva Paranhos (visconde do Rio Branco, pai do patrono da diplomacia). Ligados ao partido conservador, tiveram atuação decisiva na profissionalização e modernização do Estado brasileiro ao seu tempo. Revan, 272 páginas, R$ 53
A definição do amor
Mais recente romance lançado no Brasil pelo escritor português Jorge Reis-Sá. Um professor de filosofia do interior de Portugal se vê obrigado a rever sua identidade afetiva ao descobrir que sua esposa, grávida, teve um AVC irreparável, provavelmente provocado pela gravidez, e só será mantida viva pelos médicos, em estado vegetativo, até o nascimento da criança. A partir daí, ele precisará lidar com o luto por uma viuvez precoce e se preparar para ser o pai de uma criança que ainda não nasceu. Tordesilhas, 256 páginas, R$ 35
FICHA DE LEITURA - notícias sobre o mercado literário
> Deve sair até novembro uma ampla biografia de Jorge Amado escrita pela jornalista especializada em literatura Josélia Aguiar. A obra tomou cinco anos de pesquisas e entrevistas, entre elas com Myriam Fraga, primeira presidente da Fundação Casa de Jorge Amado, e com Paloma Amado, filha do escritor. O título, por enquanto, é Jorge Amado: uma biografia, e a editora é a Três Estrelas.
> E já que se falou de Jorge Amado, é interessante lembrar também que este é o ano do centenário de nascimento de Zélia Gattai. Para marcar a data, a Casa de Jorge Amado prepara, além de uma exposição artística, o lançamento de uma biografia da escritora feita pela brasilianista italiana Antonella Roscilli. Para celebar a data, também será posto online a partir do dia 22 de julho o acervo digitalizado de fotos e reproduções de originais da autora.
> O tradutor e professor paranaense Caetano W. Galindo, responsável por verter para o português Ulysses, de James Joyce, finaliza agora uma nova tradução de Um retrato do artista quando jovem. A nova edição terá notas de leitura do próprio Galindo, autor do recém-lançado Sim, eu digo sim, um aprofundado guia para a leitura de Ulysses. Romance de estreia de Joyce – cuja publicação completa cem anos em 2016 –, Um retrato... é uma narrativa de formação dividida em capítulos que acompanham o personagem Stephen Dedalus da infância à adolescência. Cada seção emula o vocabulário e a sintaxe do personagem na idade em que está sendo retratado. A edição a ser publicada pela Companhia das Letras sai em agosto, com um prefácio do norueguês Karl Ove Knausgard, nome confirmado para a Festa Literária de Paraty (Flip) deste ano.
>E a propósito da Flip: a Rocco põe nas livrarias nesta semana A vida sexual das gêmeas siamesas, um dos romances mais recentes do escocês Irvine Welsh. Confirmado para a festa de Paraty e celebrado por Trainspotting, Welsh faz uma sátira feroz ao culto ao corpo e à obsessão pela aparência na era midiática, por meio da relação obsessiva entre uma personal trainer e sua aluna manipuladora. A tradução é de Paulo Reis.