Uma história familiar que se desenrola dentro de um lar aconchegante de repente se mistura ao período mais dramático do Brasil. É a história de Marcelo Rubens Paiva, filho do engenheiro e deputado Rubens Paiva, tido como desaparecido e morto pelo regime militar, e a história de sua mãe, Eunice Paiva, e de suas quatro irmãs.
Não à toa as salas de cinema ficam lotadas para as sessões de Ainda Estou Aqui, filme baseado no livro que Marcelo publicou em 2015 e que, graças ao diretor Walter Salles, estampou na tela grande o sofrimento que a ditadura impôs a familiares de pessoas que não concordavam com o autoritarismo da época. O longa potencializa com imagem e som a angústia de quem esperava, sem respostas claras, por uma pista daqueles que mais tarde seriam tidos como mortos ou desaparecidos. Foram 434, segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
Cotado ao Oscar e concorrendo ao Globo de Ouro, o filme com Fernanda Torres e Selton Mello é a bilheteria de maior sucesso do cinema brasileiro no período pós-pandemia. Em dias agitados pelo excesso de entrevistas a jornais estrangeiros e anúncios de indicações a premiações internacionais, Marcelo Rubens Paiva deu a seguinte entrevista a Zero Hora, por telefone.
O desaparecimento e a morte do seu pai pela ditadura militar foram amplamente relatados nos jornais de dentro e fora do Brasil. Mas o século 21 vive um novo flerte com regimes autoritários e, embora o livro tenha sido publicado há nove anos, é como se só agora, graças à capacidade do cinema de mimetizar o sofrimento, o drama da sua família finalmente fosse vivido por grande parte dos brasileiros. Você tem essa sensação?
O caso sempre foi muito divulgado, debatido, desde a redemocratização, ou melhor, desde o fim da censura. O que temos agora é uma nova geração que não sabia dessa história. Mas se você pensar que Feliz Ano Velho foi um livro muito lido por uma geração jovem dos anos 1980 e 1990... Todo mundo tinha acesso às informações. A única diferença é que o cinema traz essa catarse que a literatura não consegue trazer, a cena acontecendo. Outro detalhe é que, por conta do livro Ainda Estou Aqui, temos mais informações do que aconteceu de fato.
Você tinha só 11 anos quando seu pai foi levado, e demorou alguns meses, talvez anos, para que você se desse conta de que ele não voltaria. Como foi para aquela criança viver a espera que se impôs abruptamente à sua família?
O mais chocante para nós foi mudar de cidade, porque foi como se estivéssemos abandonando nossa família. A minha mãe, eu acho que ela tinha certeza, ou 90% de certeza, de que meu pai tinha sido morto meses depois (do desaparecimento), e nós, não. Na minha casa, ninguém decretou o dia que isso aconteceu. Foi tudo muito aos poucos. Você tem que pensar que o desaparecimento político na época era uma coisa um pouco inédita. Meu pai foi um dos primeiros desaparecidos políticos. Isso não era comum. As pessoas eram presas, mas, depois, soltas, ou julgadas. Só depois do que aconteceu no Chile e na Argentina que o desaparecimento político virou uma forma contundente de eliminação dos inimigos.
Em 2013, Zero Hora publicou uma reportagem revelando que um oficial do serviço de repressão política da ditadura militar mantinha na sua casa, aqui em Porto Alegre, provas do sequestro do seu pai pelas Forças Armadas. Entre as provas, estavam as chaves do carro de Rubens Paiva. Essa reportagem ajudou a esclarecer um pouco mais o que aconteceu com ele?
Essa reportagem e os acontecimentos em Porto Alegre foram fundamentais para a gente ter uma visão do que realmente aconteceu. É a partir daí que começam a surgir provas. O mais chocante era a descrição dos bens dos detidos. Graças ao trabalho de um delegado da Polícia Civil que investigou um general que guardava documentos comprometedores e que, inclusive, alguns falam que ele foi morto por queima de arquivo.
Você tem mais de 10 livros publicados, mas Feliz Ano Velho, que conta como você ficou tetraplégico, e Ainda Estou Aqui, sobre o assassinato do seu pai e a luta da sua mãe pela verdade, conquistaram os leitores e são justamente os que narram acontecimentos muito dramáticos.
Não meço o valor e a importância dos livros que escrevo pelo sucesso. Para mim, cada um tem a sua história e recebe o carinho das pessoas de maneiras diferentes. É como ter vários filhos, não existe um favorito. Muita gente fala que Ainda Estou Aqui é o meu melhor livro. Pode ser que seja mesmo, eu sou incapaz de julgar. Para mim, todos os livros tiveram um momento de dedicação. Acho que o carinho das pessoas talvez seja mais intenso quando é uma história real, mas não quer dizer que uma coisa é melhor que a outra. Cada livro tem seu momento. E sim, as pessoas talvez leiam Feliz Ano Velho e Ainda Estou Aqui para tentar ver como aquele personagem, que no caso sou eu, encarou e superou aqueles problemas.
Ser lido e receber o carinho das pessoas ameniza ou reconfigura esses traumas?
Não sei se ajudou a superar. Escrever é uma forma que eu tenho para elaborar comigo mesmo. Acho que não é escrever um livro que ajuda a superar. Acho que são outras coisas que ajudam a superar: você olhar para frente, admitir, assumir, se inserir e lutar para continuar. Pode ser que escrever seja um fator também, mas não apenas.
Joaquim, seu primeiro filho, tem 10 anos, e Sebastião, o segundo, tem oito. Como você conta para eles quem foram os avós?
No meu livro novo, eu conto como eles lidam com essa questão do vovô desaparecido. Eu explico para eles da mesma forma que meu pai me explicava por que ele havia sido cassado. Eu falo para eles qual era o papel do vovô, do meu pai, durante os anos 1960, que ele tinha um grupo de amigos que queria fazer com que todas as crianças do Brasil tivessem escola, sapato, direito à saúde. Mas que um outro grupo de pessoas era contra, e essa luta acabou sendo, infelizmente, temporariamente, vencida por um grupo de pessoas que preferia deixar o poder para os mais ricos. É assim que eu explico.
Uma das coisas mais comoventes no filme do Walter Salles é o carinho explícito que havia entre os integrantes da família Facciolla Paiva em uma casa cheia de música, amigos e comida. Essa simbiose quase perfeita acontecia de verdade?
A casa era assim mesmo, cheia de música, amigos, comida, muita comida. Família italiana, né? Ainda hoje tem esse ambiente. Claro que sem meu pai e minha mãe. Mas ainda hoje fazemos esses encontros periódicos. Acho que é um jeito italiano de lidar com a família. Esses encontros e reencontros com uma mesa no jardim e todo mundo levando uma receita diferente. Não vejo a vida em família de outra forma. Sempre foi assim.