Em seu longo ensaio A Dança dos Deuses: Futebol, Cultura, Sociedade, publicado em 2007, o medievalista Hilário Franco Jr. propõe uma leitura do futebol como metáfora para vários aspectos do Brasil: sociológico, antropológico, religioso, psicológico e até linguístico. O lançamento do livro coincidiu com a repercussão do caso no qual um dirigente do Palmeiras declarou que um dos jogadores do rival São Paulo era homossexual, segredo de polichinelo do qual todos estariam a par no mundo da bola. A repercussão ganhou dimensões tais que o próprio jogador se manifestou – negando ser homossexual. Em entrevista à Folha de S. Paulo, Franco Jr. na época comentou a respeito do caso: "Não surpreende que o futebol tenha sido, nesse episódio, mais uma vez, uma janela aberta sobre a sociedade. Surpreende o que se viu nessa fatia supostamente nobre da sociedade".
Foi o caso mais emblemático envolvendo homossexualidade e futebol no Brasil, mas houve outros. Nesse cenário, em que o futebol parece mais resistente a abrir mão de tabus e preconceitos arraigados do que a maioria de outros campos da sociedade brasileira, a graphic novel O Outro Lado da Bola (Record, 216 páginas, R$ 54,90), com roteiro de Alê Braga e Alvaro Campos e desenhos de Jean Diaz, é um dos lançamentos mais interessantes da atual safra de quadrinhos nacionais.
O Outro Lado da Bola é centrado, inicialmente, em Cris, o "Maestro", craque e capitão do fictício ma non troppo Alvinegro Paulista. Já em idade de pensar mais no fim da carreira do que no futuro dela, Cris é líder em campo e ídolo da torcida, mas esconde do público o fato de ser gay. Casado, não vive exatamente uma fachada, mas ele e a mulher desenvolveram suas vidas sexuais em sentidos diversos. Certo dia, um casal homossexual é agredido em plena rua por dois integrantes da torcida organizada do clube, um deles vestindo uma camisa com o número 10 que Cris traja em campo. Um dos jovens agredidos, um professor, morre – justamente um ex-namorado que teve papel fundamental na vida de Cris. Impactado pelo ocorrido, o jogador decide dar um basta em sua vida dupla e revela sua homossexualidade, numa entrevista ao vivo. E, a partir daí, terá de encarar o "outro lado da bola", aquele mais assemelhado ao veneno do que ao remédio, para usar a oposição feita por José Miguel Wisnik em seu longo ensaio sobre o futebol e a identidade nacional Veneno Remédio (2008).
A partir desse ponto de partida, O Outro Lado da Bola se desenvolve explorando ao limite os desdobramentos do gesto de Cris – uma atitude tão impensável no atual cenário do futebol brasileiro que quase serve para qualificar o livro como narrativa de ficção fantástica. De imediato, embora o jogador angarie apoio nas redes sociais, a torcida realiza protestos, acossando os profissionais na saída do estádio. Mas, como quem puxa meadas de um novelo, os autores vão trazendo para o conjunto novos desdobramentos que expõem e complexificam a relação do futebol com outras ramificações da sociedade.
Os patrocinadores ameaçam romper contrato. A filha adotiva de Cris passa a ser alvo de bullying. Os companheiros de time ligados a igrejas evangélicas contestam o papel do atleta como líder. Por causa dos tumultos provocados pelas facções de torcedores do próprio Alvinegro, a Polícia Militar se recusa a fazer a segurança no estádio, a menos que Cris não esteja em campo. O presidente do clube pressiona Cris para desmentir sua condição e oferecer outra versão segundo a qual o jogador apenas se disse gay para pressionar a polícia a dar atenção ao crime.
Após estabelecer o colapso da vida de Cris, a narrativa também se permite mudar o foco em pontos cruciais, narrando novos desdobramentos pelo olhar da mulher de Cris – não a típica esposa de fachada clichê, mas parceira do jogador e verdadeira gestora dos rumos de sua carreira – e de um dos torcedores que cometeram o assassinato que deu origem a tudo, um personagem que é mostrado tendo sua própria jornada enviesada entre uma redenção insuficiente e a tragédia.
Ao longo das mais de 200 páginas, o drama de Cris deixa de ser pessoal para enfocar um mosaico do que há de oculto no cotidiano do futebol: a corrupção de dirigentes, a promiscuidade entre cartolas, a política e as torcidas organizadas. Cris também é um herói complexo, já que parte de seus revides se dá jogando o jogo sujo que ele conheceu e também dominou na carreira no futebol.
Não é uma obra perfeita. Embora a arte de Jean Diaz seja eficaz em termos de caracterização, ambientação e narrativa, por vezes não diferencia de modo competente alguns personagens coadjuvantes – o que pode ser um problema em uma história em preto e branco com tantas subtramas. O roteiro de Braga e Campos tem a capacidade de agregar cada vez mais elementos sem perder de vista o plano geral, mas algumas soluções descambam para o melodramático. Ainda assim, por sua eficiência em meter o dedo na ferida em diversos pontos que o mundo do futebol parece fazer força para ignorar a qualquer custo, é um trabalho marcante.
Uma das mais provocadoras obras a sair em 2018 na ficção brasileira em qualquer plataforma.