Demorei quatro dias para ler Do Inferno. Quatro dias e quatro noites. Um nada comparado aos 10 anos que os autores, o inglês Alan Moore (roteiro) e o escocês Eddie Campbell (arte), levaram para concluir a HQ sobre Jack, o Estripador, que, se não foi o primeiro serial killer de que se tem notícia, certamente tornou-se o paradigmático, a projetar uma sombra sobre todos os seus sucessores. (A propósito, pode-se traçar um paralelo entre criador e criatura: Alan Moore não foi o primeiro grande escritor de quadrinhos, mas o que ele fez em uma série de obras dos anos 1980, como Miracleman, Monstro do Pântano, V de Vingança e Watchmen, estabeleceu parâmetros a partir dos quais passaram a ser julgados gibis de super-herói e afins. Seu truque, resumidamente, consiste em aplicar a lógica do realismo a esse universo, inserir os homens e mulheres fantasiados no mundo real, lidando com problemas reais de seu tempo – a ameaça de guerra nuclear, crises sociais, desastres ambientais – o que, não raro, significa desconstruir os personagens a ponto de retratá-los como tiranos.)
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O trabalho do roteirista e do artista começou em 1989 e só ganhou ponto final em 1999, quando publicaram pela primeira vez a versão encadernada. Houve contratempos editoriais, mas boa parte desses 10 anos foi consumida pelas pesquisas empreendidas pela dupla. A causa: Jack é o mais lendário dos assassinos seriais. A começar, sua identidade nunca foi oficialmente confirmada – seu nome é um pseudônimo atribuído ao matador que agiu em 1888 em Londres, no humilde distrito de Whitechapel, fazendo prostitutas de vítimas e removendo seus órgãos internos (daí o apelido). O mito cresceu amparado, de um lado, por uma malfadada investigação policial e, de outro, por uma ampla cobertura pela ascendente imprensa da época. Não demorou para que surgissem detetives amadores e teorias conspiratórias envolvendo a realeza britânica, assim como historiadores sérios e hipóteses bem fundamentadas. (A propósito, Moore não faz muito mistério acerca de quem seria Jack. Pelo contrário: é ele, o facínora, o protagonista da HQ, mas revelar seu nome aqui neste texto seria informação desnecessária, um atropelo na fruição lenta e cadenciada de Do Inferno pelo leitor.)
A consequência: ao longo de uma década, Moore e Campbell engendraram uma obra monumental. A edição completa brasileira publicada no final de 2014 pela editora Veneta – o preço varia de R$ 79,90 a R$ 129,90, dependendo do desconto oferecido – pesa 1,7kg e tem quase 600 páginas, incluindo os indispensáveis apêndices, em que o roteirista explica capítulo a capítulo referências, justificativas e fontes de informação. (A propósito, Moore AMA escrever. Jerusalém, seu segundo livro de prosa, que será lançado no Brasil pela Companhia das Letras, começou a ser escrito em 2006 e foi finalizado em setembro de 2014, totalizando 1.184 páginas. Se seus gibis, usualmente, são carregados de texto, os scripts que envia para os artistas sãos mais extensos ainda. Na biografia Mago das Palavras: A Vida Extraordinária de Alan Moore, o jornalista Lance Parkin precisa de quase três páginas para reproduzir as anotações do roteiristas referentes a um único quadro de Batman: A Piada Mortal. Moore "conversava" com o desenhista, explicava o efeito que desejava causar, fornecia um contexto inspiracional. Eddie Campbell relata: "O roteiro de Alan Moore tem descrição, a prosa dele é inacreditável. Qualquer outro roteirista diz: 'Neste quadro está chovendo'. Mas Alan diz: 'A chuva dedilha código morse ao ritmo de um tenebroso romance russo'".)
Não é só o tamanho da HQ que torna a leitura mais vagarosa. Ingressar no Inferno de Moore é um passatempo exigente. Eis um gibi – se é que se pode chamar assim – denso, múltiplo no número de personagens, de fatos, de ramificações, de temas e mesmo de gêneros. É uma trama policial? É um romance histórico? É um misto de filosofia e esoterismo? É uma história de amor? É um manifesto feminista? É uma crítica aos poderosos, tão despudorados na hora de limpar sua barra (vemos isso todos os dias...)? É tudo isso e também um retrato do ser humano em qualquer tempo, com suas virtudes, suas fraquezas, suas aspirações e suas frustrações, seu engenho e sua submissão a forças maiores – sejam crenças, sonhos, o acaso, o destino. (A propósito, ao longo da carreira Moore foi se aproximando mais e mais do misticismo e do ocultismo, tanto em quadrinhos como Neonomicon e Promethea quanto na vida pessoal. Ele é, de fato, um mago.)
Tudo em Do Inferno é superlativo. Sua capacidade de transcendência é enorme – na "viagem" proposta por Moore, que cruza os crimes de Jack com outros acontecimentos da época, como a concepção de Adolf Hitler e a descoberta de William Merrick, o Homem Elefante, minha mente voou durante a leitura; me vi refletindo sobre diversos assuntos, como o amor, a política, o papel da imprensa, o mal que existe em cada um de nós. O trabalho de recriação da fascinante lenda e de seus cenários é gigantesco – vide a longa descrição gráfica de um dos crimes, vide o passeio de charrete que explica detalhes históricos e arquitetônicos de Londres. A combinação de crueza e delicadeza da arte de Eddie Campbell é mesmerizante – por vezes sutis, seus gestos e suas expressões garantem nossa empatia por uma série de personagens, como a prostituta Marie Kelly, o detetive Abberline e até o coitado Druitt. Empatia ou uma tremenda repulsa – afinal, esta é uma história de horror e de horrores. (A propósito de horror, mas no mau sentido, é assim que muitos fãs e o próprio Moore encaram a versão cinematográfica homônima de Do Inferno, dirigida pelos irmãos Allen e Albert Hughes e estrelada por Johnny Depp e Heather Graham. O escritor britânico repudia os filmes baseados em suas obras _ os outros são A Liga Extraordinária, V de Vingança e Watchmen. Seu nome sequer aparece nos créditos.)
Bom, se você chegou a este último parágrafo, pode estar se perguntando: nesses tempos de crise, vale mesmo pagar no mínimo R$ 79,90 por uma única HQ? Pois é. Este nosso hobby não é barato. Procurando bem, pode-se encontrar uma edição usada por R$ 55, R$ 60, mas também haverá quem peça R$ 150. Cento e cinquenta reais! Essa inflação é decorrente de dois motivos: primeiro, a ganância humana – infelizmente, nosso mercado também é cheio de especuladores e aproveitadores; cabe a nós não compactuar com essas práticas. No momento em que a gente paga mais do que o preço de capa por um quadrinho DE SEGUNDA MÃO, ainda que esteja lacrado, estamos fazendo girar o círculo vicioso. O segundo motivo é que as obras de Alan Moore são valorizadas, afinal, o cara é um rei. De 1988 para cá, já ganhou nove vezes o prêmio Eisner, o Oscar dos gibis americanos, e sete troféus Harvey na categoria melhor roteirista, distinção que os leitores da Comics Buyer's Guide lhe concederam cinco vezes. Do Inferno é uma das joias da coroa que adorna a cabeleira já grisalha do barbudo de Northampton, cidadezinha inglesa onde sempre morou nos seus 63 anos de vida. Venceu cinco Eisner e, em 2001, recebeu o prêmio da crítica no prestigiado Festival Internacional de Angoulême, na França. (A propósito, seu Estripador abriu meu apetite por Moore. Comprei a biografia citada e comecei a correr atrás de lacunas na minha coleção. Estão na fila de leitura Miracleman, Supremo, Promethea, A Balada de Halo Jones e Choques Futuristas. Muitas lacunas, né? Em compensação, o que eu já tinha na estante era motivo suficiente de orgulho: Do Inferno, a saga completa do Monstro do Pântano, V de Vingança, Watchmen, Batman: A Piada Mortal, Superman: O que Aconteceu ao Homem de Aço? e A Liga Extraordinária.)