A Dinamarca é um dos países onde há o menor índice de desigualdade social e a maior qualidade de vida, é um dos países mais pacifistas do mundo e um dos menos corruptos. A saúde e o bem-estar da nação são inversamente proporcionais à saúde mental e ao bem-estar de seus cidadãos, é o que parece nos dizer um bom punhado de cineastas dinamarqueses. De Lars von Trier e Thomas Vinterberg a Susanne Bier e Cristoffer Boe, somos brindados por filmes que mostram personagens afligidos por dilemas morais, aturdidos por segredos de família, hostilizados pela sociedade e, não raro, atolados em encrencas nas quais eles mesmo se colocam, sem nem saber (ou sabermos) direito o motivo.
É o caso de Anne, a bem-sucedida advogada especializada em defender adolescentes vítimas de abuso sexual ou violência doméstica que é interpretada por Trine Dyrholm em Rainha de Copas (Dronningen), drama da diretora May el-Toukhy em cartaz nos cinemas a partir desta quinta (12). Aparentemente, ela leva uma vida gostosa em uma bela casa, onde mora com o marido, o médico Peter (Magnus Krepper), e as duas filhas gêmeas, as adoráveis Frida e Fanny, para quem costuma ler à noite Alice no País das Maravilhas (atenção à referência: no livro de Lewis Carroll, há uma personagem chamada Rainha de Copas, à qual todos temem e que tem a fama de decapitar seus desafetos).
A serpente no paraíso toma a forma de Gustav (Gustav Lindh), o jovem e rebelde filho do primeiro casamento de Peter, desfeito justamente por causa de Anne. Depois de ser expulso de um colégio interno na Suécia, ele é enviado pela mãe para morar com a nova família do pai. O conflito inicial é até previsível: Gustav não se entrosa, bagunça tudo, inclusive comete atos ilícitos. O que vem a seguir é inesperado: Anne começa a se sentir atraída pelo rapaz.
— Às vezes, o que nunca deveria acontecer acontece — a madrasta diz ao enteado.
Vencedor do Prêmio do Público no Festival de Sundance, nos Estados Unidos, Rainha de Copas traz uma série de marcas desse cinema dinamarquês que é cirúrgico ao desnudar as fraturas familiares e as hipocrisias com as quais tentamos tapar nossas feridas – a protagonista vive o paradoxo de se tornar aquilo que, como advogada, combate: uma abusadora. Em especial na fotografia e na cenografia, o filme segue ou adapta algumas das 10 regras estipuladas por Von Trier e Vinterberg no manifesto do Dogma 95, o movimento que pregava um cinema mais realista. Em que pese a intensidade das atuações, os personagens parecem pessoas reais flagrados em afazeres bem rotineiros ou em momentos delicadíssimos, diante dos quais somos costumeiramente instigados a imaginar como reagiríamos. Não há pudor em relação ao sexo: se ele tem de acontecer para o desenvolvimento da trama, será mostrado sem artifícios.
A narrativa vai se construindo com elipses e lacunas, ainda que, aqui e ali, o entorno ajude o espectador a montar o quadro do desastre _ em um jantar para amigos de Peter, Anne aumenta o volume da música para dançar, sozinha, Tainted Love, clássico da dupla britânica de synthpop Soft Cell, dos anos 1980: "Às vezes, sinto que tenho de / Fugir, tenho de / Escapar / Da dor que você leva ao meu coração / O amor que compartilhamos / Parece não chegar a lugar algum / E perdi minha luz / Pois me debato e me reviro, não consigo dormir à noite".
Ali está uma mulher que, agora sabe, tem de fugir, tem de escapar, apesar de não saber ao certo para onde. Ao mesmo tempo, a letra espelha, por antecipação, o sofrimento imposto a Gustav, que bem poderia fazer seus os versos "este amor contaminado que você tem me dado / Eu te dei tudo que um garoto poderia te dar / Pegue minhas lágrimas e isso não é nem perto de tudo".
10 filmes dinamarqueses que perturbam
Festa de Família (1998), de Thomas Vinterberg
No aniversário de 60 anos do patriarca, o filho mais velho (Ulrich Thomsen) acusa publicamente o pai de abusar sexualmente tanto dele como de sua irmã gêmea, que recentemente se matou. No elenco, Trine Dyrholm.
Os Idiotas (1998), de Lars Von Trier
Um grupo de jovens intelectualizados decide se comportar como retardados mentais para testar a reação da sociedade burguesa de Copenhague.
Reconstrução de um Amor (2003), de Cristoffer Boe
Em Copenhague, cruzam-se os caminhos de Aimee (Maria Bonnevie), que está na cidade para o lançamento do livro de seu marido, e o fotógrafo Alex (Nikolaj Lie Kass), que espera a namorada na estação de trem. A partir daí, os dois tentam desesperadamente se desvencilhar de suas vidas amorosas.
Depois do Casamento (2006), de Susanne Bier
Indicado ao Oscar de filme estrangeiro, tem como protagonista Jacob (Mads Mikkelsen), homem que dedicou sua vida a ajudar crianças carentes na Índia. Lá, como administrador de um orfanato prestes a fechar, ele recebe uma proposta incomum: um empresário dinamarquês (Rolf Lassgard) pretende doar à entidade US$ 4 milhões, mas impõe algumas condições, que incluem comparecer ao casamento da filha do milionário. E aí, Jacob depara com seu passado.
Anticristo (2009), de Lars Von Trier
Acompanha o desvairado luto de um casal (Charlotte Gainsbourg, melhor atriz no Festival de Cannes, e Willem Dafoe) que acaba de perder o filho. O filme causou escândalo – sendo acusado de misógino e gratuitamente violento e falsamente profundo –, mas também apareceu quem o apontasse como uma obra-prima de rara intensidade.
Submarino (2010), de Thomas Vinterberg
Dois irmãos crescem à sombra de uma mãe alcoolista e negligente que os condenou a seguir suas vidas na mão única da autodestruição: Nick (interpretado por Jakob Cedergren) acaba de sair da prisão, tem temperamento violento e bebe como um viking. O caçula (personagem sem nome vivido por Peter Plaugborg) é um zumbi corroído pela heroína que tenta criar sozinho o filho pequeno.
Em um Mundo Melhor (2010), de Susanne Bier
Vencedor do Oscar e do Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, faz um paralelo entre dois ambientes extremos em suas realidades mas igualmente tensionados pela violência. Mikael Persbrandt vive um médico que trabalha no campo de refugiados de um país africano cindido por uma guerra. Na Dinamarca, ele acompanha o drama de seu filho, que, vítima de perseguição na escola, faz amizade com um novo colega, cujo impulso protetor e agressivo se revela por demais perigoso.
A Caça (2012), de Tomas Vinterberg
Às vésperas do Natal em uma cidadezinha, Lucas (Mads Mikkelsen, prêmio de melhor ator no Festival de Cannes), professor no jardim de infância, é injustamente acusado de abusar sexualmente de uma garotinha, o que o torna alvo de perseguição por toda a comunidade. Foi indicado ao Oscar de filme estrangeiro.
Segunda Chance (2014), de Susanne Bier
Ao intervir em um caso de briga doméstica, o policial Andreas (Nikolaj Coster-Waldau, o Jaime Lannister de Game of Thrones) e seu parceiro encontram um casal de viciados e um bebê em condições deploráveis. Andreas ultrapassa os limites da lei e da ética ao levar para casa o pequeno Sofus.
Culpa (2018), de Gustav Möller
Thriller sensorial – a audição é o sentido em destaque, e não a visão – em que um policial do serviço de emergência, Asger (Jakob Cedergren), tenta ajudar uma mulher em situação de risco que pede socorro pelo celular.