“A vida, o que é senão um sonho?”

A linha encerra um poema sobre um passeio de barco a remo com três crianças, de “olhos ávidos e ouvidos receptivos, satisfeitas em ouvir uma história simples”. Mas o poema não acabou ao fim do passeio: o conto simples ouvido pelas meninas na tarde quente de 4 de julho de 1862 transformou-se em uma obra que atravessou gerações.

Tudo isso graças à pequena Alice Liddell, 10 anos, que pediu ao remador,o reverendo Charles Dodgson, que escrevesse o que contou a ela e às duas irmãs. O resultado veio poucos meses depois na forma de um  manuscrito que, de tanto sucesso que fez entre as crianças de Oxford, foi impresso,

 em 1865, como livro. O título da história? Alice no País das Maravilhas. Tímido e gago, o reverendo Dodgson, professor de matemática na Faculdade Christ Church, assinou a obra sob o pseudônimo Lewis Carroll.

 

Indo contra as historietas infantis com morais sobre bom comportamento, Carroll criou um mundo mágico de animais falantes e autoridades questionáveis. Em um ano, todas as 5 mil cópias da primeira edição haviam sido vendidas - sucesso estrondoso para a época, que só cresceu, assim como o amor de leitores por Alice no mundo inteiro.

Um livro no qual todos

se tornam crianças

Carroll para além da literatura

No mundo acadêmico, o legado de Lewis Carroll jamais deixou de ser discutido. E não só no âmbito de sua linguagem pioneira, mas também de seus estudos no campo da lógica e da matemática. Em diversos países, estudiosos se reúnem em "Sociedades Lewis Carroll" para pesquisar, discutir e difundir esse legado. Stephanie Lovett, presidente da sucursal norte-americana, destaca um espectro pouco conhecido do trabalho do britânico:

– Seu último trabalho foi um livro em três volumes sobre lógica simbólica direcionada a leigos. Ele queria dar a todos as ferramentas para entender e avaliar o que ouviam para que fossem livres para tomarsuas próprias decisões sem serem iludidos por retórica e ideologia deficientes.

Ele  queria que todos fossem capazes de pensar claramente para exigir integridade e humanidade.

Na Sociedade Lewis Carroll do Brasil, o foco dos 50 membros é menos na lógica e mais na literatura. Para a presidente Adriana Peliano, a saga de Alice, com todas as suas perguntas, é um convite à pesquisa:

– Alice é um desafio. Ela é viva e desafia o saber instituído e o senso comum despertando a multiplicidade caleidoscópica da metamorfose de tudo o que existe. É um livro de perguntas móveis e mutantes, sem respostas prontas, que nos convida a procurar o jardim das inesgotáveis possibilidades criativas que existe em cada um de nós.

Já Stephanie Lovett, presidente da Sociedade Lewis Carroll da América do Norte, tanto crianças quanto adultos se deixam levar pelo lado subversivo e questionador de Alice:

– As crianças, que estão à mercê do mundo adulto, precisam muito de um amigo, de alguém que concorde que os adultos e suas preocupações são muito bobos e superficiais. Os adultos, também, vivem em um mundo onde regras sem sentido precisam ser seguidas e pessoas dizem estar no comando, embora pareçam não ter ideia do que estão fazendo. Os adultos precisam ser lembrados ainda mais de não obedecer nem cooperar com aqueles que não merecem. Todos precisamos aprender a dizer "Vocês não são nada além de um baralho de cartas!".

Das páginas para as telas

Em sua primeira frase, o livro já mostra um pendor cinematográfico.

“Alice estava começando a ficar muito cansada de estar sentada ao lado de sua irmã e não ter nada para fazer: uma vez ou duas ela dava uma olhadinha no livro que a irmã lia, mas não havia figuras ou diálogos nele e ‘para que serve um livro’, pensou Alice, ‘sem figuras nem diálogos?’” (Tradução: Clélia Regina Ramos, 2009)

No total, tanto Alice no País das Maravilhas quanto Alice Através do Espelho foram objeto de mais de 20 adaptações.

– O apelo dos livros de Alice aos diretores parece ser a combinação de elementos nonsense com descrições visuais muito

 cuidadosas – afirma Neil Coombs, professor de Artes no Coleg Llandrillo Cymru, no País de Gales, e pesquisador das influências do surrealismo nas adaptações cinematográficas de Alice.

– As adaptações de mais sucesso, para mim, são aquelas que mantêm a incerteza fragmentada do original, em vez daquelas que procuram impor uma narrativa ou uma estrutura moral sobre a ambiguidade do texto original – opina.

À parte as adaptações mais conhecidas – notadamente as Alices de Walt Disney (1951) e de Tim Burton (2010) –, Coombs destaca três outras produções de nome Alice: a de 1966, de Jonathan Miller, a de 1988, de Jan Svankmajer, e a minissérie de 2009, do Sci-Fi Channel.

No aniversário, muitas homenagens

Para comemorar seus 150 anos, além de receber reedições de luxo, Alice vira caubói, empreendedora e personagem de sua própria ficção.

Sua bisneta, Vanessa Tait, lança The Looking Glass House, ficção histórica que romanceia, a partir da figura de uma governanta que rivaliza com as meninas Liddell, o fim abrupto da relação de Carroll com a família de Alice.

A editora Senac lança Atitude Empreendedora: descubra com Alice seu País das Maravilhas, de Mara Sampaio, que mostra como empreender a partir das situações que Alice enfrenta após cair na toca do coelho.

 

A Record lança com seu selo infantil, o Galerinha, A Pequena Alice no País das Maravilhas, versão criada por Carroll para que o livro pudesse ser “manuseado, babado, dobrado e amarfanhado” por leitores com menos de cinco anos de idade.

Alice também faz uma incursão inusitada nos quadrinhos em um capítulo de Rocky & Hudson - Os Caubóis Gays, de Adão Iturrusgarai.

Tanto a Cosac Naify quanto a Zahar investem em reedições. A primeira é ilustrada por Luiz Zerbini e a segunda, por Adriana Peliano.

A discutida relação entre autor e musa

Outro espectro bastante estudado é a relação entre Carroll e Alice: ele a desenhava, fotografava (algumas vezes nua) e se mostrava sempre afetuoso, levantando suspeitas entre biógrafos. A bisneta de Alice Liddell, Vanessa Tait, compreende a desconfiança:

– Passei por uma fase de insistir que Carroll estava sim apaixonado por Alice, o que chateava minha mãe, que muito teve que responder a tais acusações. “Naquele tempo”, ela diz, “ninguém pensava que fotos de crianças nuas eram algo lascivo. Gostar da companhia de crianças não era sinônimo de pedofilia para os vitorianos.

Ela encontra eco nas outras especialistas:

–  É possível tanto que ele tenha se

apaixonado por Alice quanto que desejasse ou esperasse poder aguardá-la, mas não há como saber e não acho que especular seja útil. Acho que a combinação entre gostar de seu lugar em Christ Church e não encontrar a mulher certa, o que pode ou não ter a ver com a indisponibilidade de Alice, conspirou para mantê-lo vivendo e trabalhando na faculdade _ reflete Stephanie Lovett.

Adriana Peliano segue a mesma linha:

– Se ele queria casar com Alice não existem provas além de especulações, muitas delas alimentadas por páginas arrancadas do diário dele. Existia amor entre eles, mas o amor é múltiplo e amplo, não precisa estar ligado a romance ou casamento.

Mas, afinal, por que leitores de todas as idades continuam fascinados pela história de Alice?

Para Adriana Peliano, ilustradora e presidente da Sociedade Lewis Carroll Brasil, o que emociona a todos na obra é seu poder de fazer qualquer um sentir-se criança novamente:

– Virginia Woolf escreveu que Alice não é um livro para crianças, mas um livro no qual nos tornamos crianças. Penso que Alice se comunica com muitas dimensões de nós mesmos. Em cada idade, lemos Alice de outra forma, todas potencialmente férteis e transformadoras.

CRÉDITOS

Reportagem:

Fernanda Grabauska

 

Ilustração:

Fernanda Grabauska

 

Design:

Leonardo Azevedo

 

Edição:

FêCris Vasconcellos

Patrícia Rocha