Em cartaz nos cinemas de Porto Alegre, Aqueles que Ficaram guarda semelhanças com Uma Mulher Alta, que foi exibido recentemente e que reetreia no dia 9 de janeiro na Sala Paulo Amorim. Ambos são longas-metragens produzidos no Leste Europeu – Hungria e Rússia, respectivamente – que, centrando o foco no relacionamento entre dois personagens, abordam traumas deixados pela Segunda Guerra Mundial. Ambos se passam pouco depois do mais abrangente conflito militar da História, e o ritmo narrativo de ambos parece espelhar o lento e silencioso processo de cicatrização das nações envolvidas – a paz não significa o fim da morte, da violência, das perseguições. Por fim, ambos estão entre os 10 semifinalistas do Oscar de melhor filme internacional (os cinco concorrentes serão anunciados no próximo dia 13).
Nesta lista, da qual também já pudemos assistir a Dor e Glória (Espanha), Parasita (Coreia do Sul) e Atlantique (Senegal), e da qual A Vida Invisível (Brasil) ficou de fora, há um terceiro título proveniente do Leste Europeu que tem a Segunda Guerra Mundial como tema. É O Pássaro Pintado (República Tcheca), adaptação de uma novela do escritor Jerzy Kozinski, que causou uma revoada na plateia durante sua exibição no Festival de Cinema de Veneza, em setembro de 2019, por conta das cenas de agressões físicas e sexuais e mutilações que permeiam a trama sobre um menino judeu que perambula por vilas e guetos.
A Segunda Guerra é um assunto que costuma comover os votantes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, sobretudo nessa categoria. Nas últimas 40 edições do Oscar de filme internacional, nenhum outro tema fez tanto sucesso: 11 vezes (mais de 25%) a estatueta foi para obras ambientadas durante o conflito ou sob sua sombra, seja antes, seja após anos ou mesmo décadas. São os casos, para ilustrar as três situações, de A Vida É Bela (1998), O Tambor (1979) e Ida (2014). Geralmente, são longas como Uma Mulher Alta e Aqueles que Ficaram, que, contrariando a tradição americana de reconstituir combates e o cotidiano dos soldados, focam suas lentes nos civis afetados, especialmente os judeus (vide, por exemplo, o austríaco Os Falsários, de 2007, e o húngaro O Filho de Saul, de 2015).
Antes de encarar Uma Mulher Alta, cabe ao espectador examinar bem seu estado de espírito e sua disposição. É pleno de força e oferece momentos sublimes, mas trata-se de um filme devagar, deveras devagar (o que contribui para sua duração de duas horas e 17 minutos) e triste, muito triste.
O drama é inspirado no livro A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, da jornalista e escritora bielorrussa Svetlana Aleksievitch, prêmio Nobel de Literatura em 2015. Segundo longa-metragem do russo Kantemir Balagov, 28 anos, valeu a ele o troféu de melhor diretor na mostra Un Certain Regard (Um Certo Olhar) do Festival de Cannes.
A personagem do título é a taciturna Ilya, a Grandona, interpretada por Viktoria Miroshnichenko. Ela é uma jovem ex-combatente acometida por um transtorno de estresse pós-traumático – de vez em quando, trava, balbucia, fica catatônica. Ilya vive na Leningrado dos últimos meses de 1945 na companhia de outra mulher que lutou contra os alemães, agora sua colega no trabalho em um hospital para veteranos de guerra: a radiante Masha (Vasilisa Perelygina, com uma hipnótica presença de cena), que deseja gerar um filho como forma de se afastar da morte. Embrutecidos pelos horrores do conflito recém terminado, os cenários e os personagens são filmados por Balagov com uma aridez estética que, aqui e ali, abre frestas para a esperança e algum tipo de amor – sentimentos simbolizados pelo emprego do verde e do vermelho, cores vivas, em uma fotografia pautada pelo ocre e pelo cinza.
Três cenas resumem a melancolia contida mas devastadora do filme. Em uma delas, no hospital, um personagem indaga como uma criança poderia reconhecer o latido de um cachorro — "Eles não foram todos mortos?" (e, não está dito, transformados em cães-bomba ou mesmo alimento). Em outra, Masha observa, no consultório do médico Ivanovitch (Andrey Bykov, sinistramente carismático), um porta-retrato dos filhos dele e pergunta: "São lindos. Estão vivos?". Na terceira, Ilya está brincando com um menino pequeno quando sofre um de seus ataques e acaba sufocando o garoto — é excruciante ver sua mãozinha parar de tentar tirar o corpanzil da mulher de cima dele.
Longe de ombrear com Uma Mulher Alta, Aqueles que Ficaram é bastante lento também, mas quase uma hora mais curto (tem 87 minutos) e, embora retrate a dolorosa convalescença de um país, permite-se instantes de alegria e até um desfecho mais solar. O filme de Barnabás Tóth personifica o drama do pós-guerra nas figuras de um médico ginecologista de 40 e poucos anos que perdeu a família e de uma adolescente órfã, ambos por causa do Holocausto. Ele é Aladar, o Aldo (Károly Hajduk), ela, Klara (Abigel Szõke). Os dois desenvolvem uma relação de pai e filha, mas é patente e crescente a tensão erótica – algo que Tóth trabalha com sensibilidade e praticamente sem palavras.
Como o título explicita, todos os personagens precisam lidar com o luto. As ausências se fazem presentes, como na cena em que personagens estão à mesa, a câmera se afasta e surge uma segunda mesa, essa, com todos os seus lugares vazios.
Mas há um agravante ao tormento emocional: a Hungria de 1948, 1949 era um país espremido entre a tragédia imposta pelo nazismo e a opressão do regime comunista instalado pelos soviéticos. Essa tensão, a política, Tóth também trabalha com poucas palavras e, talvez, discrição demasiada. Há ameaças veiculadas pelo rádio, pessoas são levadas de seus apartamentos no meio da noite, mas o espectador menos familiarizado com o contexto da época pode não compreender direito o que paira sobre aqueles que ficaram (o salto no tempo, ao final, aumenta a sensação de que perdemos alguma coisa). Certo é que todos, por causa do passado e por causa do presente, aprenderam a viver em silêncio e a esconder seus desejos. Anularam-se e foram anulados, mas, de alguma forma, buscam a reconexão com a humanidade.