O mar é um personagem tão importante quanto a forte protagonista de Atlantique, obra do Senegal que recebeu o Prêmio do Júri no Festival de Cannes, figura entre os semifinalistas do Oscar de melhor filme internacional e está em cartaz na Netflix. Suas ondas podem prenunciar o infortúnio ou trazer a esperança, sua imensidão simboliza o tamanho de um amor ou a extensão de um sistema opressor para com as mulheres, sua cor inspira a fotografia, com azuis e verdes predominando, seus sons acalmam, hipnotizam, seduzem.
É à beira do Oceano Atlântico que a diretora francesa Mati Diop (sobrinha de um célebre cineasta senegalês Djibril Diop Mambéty, autor de Touki Bouki e de Hyenas) desenha sua primeira narrativa longa de ficção. Que, alinhada com alguns dos melhores títulos da temporada (de Bacurau a Parasita), transita entre gêneros. Atlantique entrelaça romance, crítica social e generosas pitadas de horror e do cinema fantástico — um casamento feliz entre a realidade quase documental e o realismo mágico.
Casamento feliz é o que não aguarda a protagonista, Ada (Mame Bineta Sane), prometida ao rico Omar (Babacar Sylla), mas apaixonada pelo pobre Souleiman (Ibrahima Traoré) — existe um obstáculo entre os dois, como bem retratado na belíssima cena em que Ada e Souleiman, cada um de um lado dos trilhos, se olham pelas frestas de um trem em movimento. Ele é um dos tantos operários que trabalham para erguer uma torre em Dacar, capital do país africano. Gigantesco, o espigão é um corpo estranho na paisagem árida e ocre da cidade, símbolo de um falso progresso — a opulência da construção anda de mãos juntas com a exploração da mão de obra pelo empresariado e com a corrupção do Estado, que fecha os olhos diante dos três meses de salários atrasados.
Por conta disso, o jovem decide abraçar-se ao numeroso contingente de africanos que parte em busca de melhores condições na Europa, mesmo que para tanto arrisquem a vida na travessia do Atlântico. Não será spoiler dizer que Souleiman desaparece, uma tragédia anunciada pela atmosfera do filme. Mas é uma surpresa fascinante o modo como a diretora lida com essa ausência.
Se você não se incomoda com eventuais revelações sobre o desdobramento da trama, vamos em frente. Caso contrário, salve o link para continuar lendo depois de assistir a Atlantique.
Em meio ao sumiço de Souleiman e dos demais migrantes, ocorre o casamento de Ada e Omar. Mas a festa é interrompida por um misterioso incêndio no quarto do casal. Mais ou menos na mesma noite, um grupo de mulheres desperta, como se elas tivessem acabado de experienciar um sonho erótico, e se lança, feito zumbis, em uma caminhada pelas ruas de Dacar, rumo a não se sabe onde. É uma sequência impactante, daquelas que revigoram nossa paixão pelas potencialidades do cinema, em sua mistura de imagem e som, seus signos e suas elipses, sua arte de fabricar a ilusão da verdade (a ponto de acreditarmos sentir texturas e cheiros), sua capacidade de, pelo uso da câmera e da montagem, manipular o espaço e o tempo.
Senhora do tempo e do espaço cinematográficos — repare na arquitetura tão refinada quanto enxuta dos planos e em como eles se estendem ou se encurtam sem que pareça desperdício ou abrupto —, Mati Diop assume riscos no roteiro coescrito com Olivier Demangel. Cobra do espectador a disposição para banhar-se em águas místicas, ainda que todo o entorno seja concreto e palpável. Seu convite é irresistível, pois conta com uma embaixadora gentil para com o público e firme perante interlocutores que tentam atravancar seu caminho nessa jornada libertadora e impor o papel que ela deve desempenhar na sociedade. A Ada interpretada por Mame Bineta Sane é como um espelho do mar: ora seu rosto está sereno e contemplativo, ora revoltoso, demandando desaguar suas emoções e seguindo o curso da vontade própria.
Mergulhe de cabeça em Atlantique.