Cidade de Deus (2002) levou Fernando Meirelles à Cidade dos Sonhos. As indicações ao Globo de Ouro (melhor filme estrangeiro) e ao Oscar (diretor, roteiro adaptado, fotografia e montagem) abriram as portas de Hollywood para o cineasta brasileiro.
Sua carreira internacional começou em 2005, com O Jardineiro Fiel, que valeu a Rachel Weisz o Oscar de atriz coadjuvante e disputou também os troféus de roteiro adaptado, edição e trilha sonora. Baseado no romance de José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira (2008) tinha Julianne Moore, Mark Ruffalo, Danny Glover e Gael García Bernal no elenco e foi selecionado para a competição no Festival de Cannes. Em 2012, lançou 360, que interconectava histórias sobre relacionamentos ambientadas entre Minneapolis, nos Estados Unidos, e Paris, entre Viena e Bratislava (a capital da Eslováquia), estreladas por Anthony Hopkins, Jude Law, Rachel Weisz e Juliano Cazarré, entre outros. O filme não aconteceu, como se costuma dizer: não concorreu a prêmios, desagradou à crítica e nem se pagou nas bilheterias – custou US$ 14 milhões a arrecadou apenas US$ 1,6 milhão.
E então Fernando Meirelles praticamente sumiu do cinema e voltou ao Brasil. Assinou apenas o segmento A Musa da coletânea Rio, Eu Te Amo (2014), dedicando-se a projetos nacionais na TV (como a minissérie Felizes para Sempre?, da Globo, e episódios do seriado Pico da Neblina, criado por seu filho, Quico Meirelles, para a HBO) e à cerimônia de abertura da Olimpíada do Rio, em 2016 (em parceria com Daniela Thomas).
Sete anos depois de seu último longa-metragem, o diretor retorna com uma produção internacional já abençoada pela crítica. Dois Papas (Two Popes), que Meirelles, 64 anos, realizou para a Netflix, recebeu quatro indicações ao Globo de Ouro. e concorre a três Oscar: melhor ator (Jonathan Pryce), ator coadjuvante (Anthony Hopkins) e roteiro adaptado (Anthony McCarten).
Dois Papas está em cartaz na Netflix, mas alguns cinemas ainda o exibem. Vale a pena, para acompanhar em tela grande as nuances das interpretações dos galeses Pryce, 72 anos, e Hopkins, 81. Beneficiado pela semelhança física, o primeiro encarna o papa Francisco, o argentino Jorge Bergoglio, e o segundo vive Bento XVI, o alemão Joseph Ratzinger.
A história dessa ficção baseada em fatos reais começa na eleição de Ratzinger ao cargo máximo da Igreja Católica Apostólica Romana, em 2005, após a morte de João Paulo II. De partida, Meirelles retrata as diferenças entre o argentino e o alemão. Bergoglio é o jesuíta humilde (parece seguir uma máxima de Platão relembrada por um colega de Vaticano: "A maior qualidade para ser um líder é não querer ser um líder") e terreno – chega a assobiar a popular canção Dancing Queen, do Abba. Ratzinger é ambicioso (ele quer, muito, ser o Papa), litúrgico (lamenta, com ironia, que, quando precisar dar notícias ruins, o faz em latim, "pois apenas 20% do Vaticano vai entender") e bastante conservador quanto aos costumes.
— Uma igreja que se casa com sua era ficará viúva na próxima — diz o alemão.
— Nada é estático na natureza, nem mesmo Deus — rebate o argentino.
Os dois religiosos se odeiam, mas, positivamente, isso é tratado com senso de humor pelo filme (faz lembrar de comédias como Dois Velhos Rabugentos, com Jack Lemmon e Walter Matthau). O conflito mesmo é estabelecido quando Bento, em 2012, em meio ao escândalo do vazamento de documentos confidenciais do papa e meses antes de sua surpreendente renúncia, convoca o cardeal para uma conversa a sós. Esse encontro ocorreu de verdade, no entanto, os diálogos que testemunhamos são fruto da imaginação do roteirista McCarten (autor do script de A Teoria de Tudo e coautor de O Destino de uma Nação, ambos indicados ao Oscar e igualmente inspirados em personagens reais – respectivamente, Stephen Hawking e Winston Churchill).
Ratzinger e Bergoglio travam um envolvente debate – mas acabam, também, se aproximando. Discutem, entre outros assuntos, o presente e o futuro da Igreja Católica, a omissão do Vaticano diante dos casos de padres pedófilos (um tema abordado com excesso de polidez, assim como ocorre com as contradições de Francisco quanto à homossexualidade) e o papel dos jesuítas durante a ditadura militar na Argentina – em flashbacks nos quais é interpretado pelo ator Juan Minujín, Bergoglio faz uma autocrítica. Que acaba sendo fundamental para sua transformação espiritual no Francisco que conhecemos, o humanista para quem a comunhão "não deve ser prêmio para os virtuosos, mas alimento para os famintos", o cardeal que peita o Papa e, por extensão, muitos políticos mundo afora ao perguntar:
— Jesus construiu muros?
Aliás, eis uma das virtudes de Dois Papas: transcende a religião, permitindo leituras variadas. Para além de um duelo entre duas vertentes ideológicas na Igreja Católica, pode ser visto como um choque entre o velho e o novo, entre a Europa e a América do Sul, entre as convicções pessoais e o olhar para a coletividade, entre o compromisso com a imagem e a simplicidade da verdade. A Francisco, quando entronizado, não interessa vestir os ornamentos de Papa: palavras e atitudes – como a capacidade de dialogar com quem pensa diferente – reluzem mais do que joias e sapatos vermelhos.