Com notável poder de concisão e alto impacto cinematográfico, o diretor Pawel Pawlikowski apresenta em Ida um mosaico com episódios traumáticos da história da Polônia no século 20, responsáveis por feridas nunca cicatrizadas naquele país: da ocupação nazista e perseguição aos judeus aos anos sob o garrão soviético. Dura apenas 82 minutos a jornada da personagem que será catalisadora dos fragmentos de uma tragédia familiar e coletiva ainda recente naquele ano de 1962 no qual é localizada a trama do filme. Ida tem sessões de pré-estreia diárias em Porto Alegre a partir desta quinta-feira, no Espaço Itaú 8, às 17h40min.
Anna (Agata Trzebuchowska) é uma noviça órfã criada no convento católico ao qual foi entregue na II Guerra. Prestes a confirmar seus votos, ela é enviada para conhecer uma tia, Wanda (Agata Kulesza). O contato com o mundo exterior se faz necessário para a garota refletir sobre sua vocação religiosa. Sem rodeios e com certa rispidez, Wanda logo diz que Anna, na verdade, chama-se Ida, é judia e sobrevivente do Holocausto que vitimou seus pais e milhões de judeus poloneses.
Investigar o passado - a mãe de Ida era sua irmã - parece não ser do interesse de Wanda até aquele encontro. Alcoólatra, solitária e autoritária, ela se impôs no regime comunista como juíza. Diz à sobrinha que condenou à morte vários "inimigos do povo". Sua disposição em cair na estrada com Ida para investigar o destino de seus familiares assume um caráter redentor. Seria seu derradeiro ato para acertar contas com os fantasmas que a assombram.
A viagem delas pelo interior da Polônia é reveladora. Ida e Wanda cruzam com antigos vizinhos que, movidos por um antissemitismo maior que o patriotismo, tornaram-se colaborares dos nazistas, ganhando como recompensa o direito à posse de casas, terras e bens dos judeus que denunciaram e até mesmo executaram.
Ida mostra que, naquele começo dos anos 1960, a Polônia, assim como a Tchecoslováquia, outro país da Cortina de Ferro erguida pela União Soviética, vivia uma era de pujança cultural e relativa autonomia, destacando a forte influência católica no país. Esse, digamos, choque com a realidade terá grande impacto emocional na garota. Diante dela se materializa uma tentação carnal, um saxofonista que coloca no filme temas de John Coltrane.
Nascido em Varsóvia e criado na Inglaterra, Pawlikowski, 57 anos, reconstrói a Polônia de suas memórias com um registro em preto e branco e com janela de exibição quadrada, padrão no cinema até meados dos anos 1950. Esse recurso visual, diga-se, não resulta de um mero maneirismo estético. Ao emoldurar as protagonistas em closes que extraem de seus rostos alta dramaticidade, ou em planos que exibem uma inusual simetria - com personagens quase escapando da tela -, Pawlikowski imprime em Ida um registro onírico, um tanto abstrato. É como se ele passasse os dedos pelas páginas de um velho álbum de fotografias. As imagens-peças que faltam para Ida e Wanda preencherem lacunas são complementadas pelas lembranças de outros, comprometidas e fugidias, ou, perceberá o espectador, rarefeitas naquela atmosfera cinzenta que se interpõe entre o real e o imaginário.
Ida está pré-qualificado à indicação de Oscar de melhor filme estrangeiro - os concorrentes serão anunciados nesta quinta, às 11h - e figurou em listas de melhores títulos de 2014 na Europa, nos EUA e no centro do país. Entre os mais de 30 prêmios que já ganhou, está o de melhor filme, direção, roteiro e fotografia do European Film Awards 2014. Sua chegada tardia a Porto Alegre permite o colocar desde já entre os destaques de 2015 no circuito local.