O diálogo parece corriqueiro, conversa de corredor entre duas vizinhas de um cortiço no Rio de Janeiro, e a cena não dura mais tempo do que as personagens precisam para dizer suas falas. Mas aquelas duas palavrinhas pesam profundamente, ficam reverberando na cabeça do espectador.
Recém-chegada do hospital, onde dera à luz, uma mulher é questionada por outra, que quer saber se o bebê é menino ou menina. Diante da resposta, quem perguntou comenta:
— Sorte a dele.
Sorte. Dele. Por consequência, azar o delas. Nessa brevíssima passagem de A Vida Invisível, em cartaz nos cinemas, o diretor cearense Karim Aïnouz sintetiza a história que conta e o seu contexto social, a ficção e a realidade. Nascer mulher é correr riscos.
Seja no Brasil dos anos 1950, época em que se passa a maior parte do filme, seja no país de hoje, onde é perceptível o aumento no número de casos de feminicídio – basta acompanhar os noticiários ou observar estatísticas como a do Rio Grande do Sul, que em 2018 registrou um crescimento de 40,96% em relação a 2017; onde uma pesquisa do DataFolha mostrou que, no ano passado, a cada hora 536 mulheres sofreram violência física; onde um estudo do IBGE revelou que as trabalhadoras ganham, em média, 20,5% a menos do que os homens; onde elas, apesar de serem a maioria na população (51,1%), estão sub-representadas na política – apenas 10,5% do Congresso é feminino, apenas 12% das prefeituras são femininas.
As brasileiras são agredidas, são desrespeitadas, são silenciadas. Mais de 60 anos atrás, as protagonistas de A Vida Invisível já enfrentavam os mesmos problemas. Interpretada por Carol Duarte (que fez o transexual Ivana/Ivan na novela A Força do Querer e que encarna a Solange do seriado Segunda Chamada), a jovem Eurídice é uma pianista talentosa e reprimida. Suas aventuras sexuais são as da irmã, Guida (papel de Júlia Stockler), que lhe conta sobre os avanços íntimos de um marinheiro grego. Uma protege a outra, e só se separam quando Eurídice, tocando seu piano, acoberta as escapadas noturnas de Guida. Até que um dia a separação se agiganta. Antes cúmplices, as irmãs tornam-se invisíveis uma para a outra.
Sozinhas, cada uma em seu canto, Eurídice e Guida terão de lidar com temas e situações que continuam atuais. Uma sociedade patriarcal, o machismo, a intolerância para com um comportamento libertário, a anulação ou a desconsideração pelas vontades e pelos sonhos femininos, a opressão cotidiana. Do lado de cá da tela, nutrimos a esperança por um reencontro, nos esfacelamos nos desencontros, reconhecemos dramas e desafios de nossas avós, mães, irmãs – tomara que não das nossas filhas.
Usar o passado para refletir o presente é um dos trunfos desta adaptação do romance
A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, escrito pela pernambucana Martha Batalha. Entre outros tantos, que incluem a química entre as atrizes Carol Duarte e Júlia Stockler (construída graças a um imersivo e isolante trabalho de preparação), a belíssima fotografia da francesa Hélène Louvart e a poderosa trilha sonora do alemão Benedikt Schiefer, está a opção do diretor Karim Aïnouz por uma estrutura dramática mais clássica – fez "um melodrama tropical", expressão empregada inclusive nos créditos de abertura, por acreditar, como disse em entrevista ao meu colega Daniel Feix, que "os filmes de gênero têm o poder de ser consistentes e promover reflexões a partir das sensações, e não de eventuais invenções da linguagem" e que "é possível manter a assinatura do autor dialogando com um público mais amplo".
Essa escolha feita pelo cineasta de Madame Satã (2002),
O Céu de Suely (2006) e Praia do Futuro (2014) vem dando resultado. A Vida Invisível venceu a mostra Um Certo Olhar, no Festival de Cannes, superou o fenômeno Bacurau na disputa para representar o Brasil na briga pelo Oscar de melhor filme estrangeiro (leia mais abaixo) e acaba de ser indicado na mesma categoria do Independent Spirit Awards, um troféu voltado para produções independentes e considerado um dos termômetros para a premiação da Academia de Hollywood. No dia 8 de fevereiro, terá como adversários Parasita (Coreia do Sul), Os Miseráveis e Retrato de uma Jovem em Chamas (ambos da França), Retablo (Peru) e The Souvenir (Reino Unido).
Aïnouz lança nos minutos finais de A Vida Invisível uma carta decisiva para arrebatar corações e o mundo: a participação especial de Fernanda Montenegro, um nome internacional desde que, pela Dora de Central do Brasil (1998), recebeu o Urso de Prata no Festival de Berlim e concorreu ao Oscar de melhor atriz (uma coincidência aproxima os dois papéis). Mas de nada adiantaria seu prestígio se Fernanda não demonstrasse seu talento. E, para isso, ela mal precisa das palavras – vide seu silêncio carregado de emoção em uma cena epifânica, capaz de fazer uma sala de cinema inteira desabar no choro.
Sorte a nossa.
A briga por uma indicação ao Oscar
Onze dos 95 títulos que brigam por uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro estão em exibição ou já passaram pelos cinemas gaúchos. O anúncio dos 10 pré-selecionados será em 16 de dezembro. A lista dos cinco concorrentes sai junto com as demais indicações, no dia 13 de janeiro.
A Vida Invisível tenta emplacar a quinta candidatura brasileira. A primeira foi de O Pagador de Promessas (1962), Palma de Ouro em Cannes, derrotado por Oito e Meio (Itália), de Fellini. Em 1996, O Quatrilho, sobre a colonização italiana no RS, perdeu para A Excêntrica Família de Antonia (Holanda). Em 1998, O que É Isso, Companheiro? foi superado por outro holandês, Caráter. E, em 1999, Central do Brasil chegou a Hollywood carregando o Urso
de Ouro do Festival de Berlim e o Globo de Ouro, mas viu o Oscar ir para o italiano
A Vida É Bela.
- Em cartaz
A Odisseia dos Tontos (Argentina)
A Vida Invisível (Brasil)
Parasita (Coreia do Sul)
Rainha de Copas (Dinamarca)
Adam (Marrocos)
A Camareira (México) - Já foi exibido
El Despertar de las Hormigas (Costa Rica)*
O Tradutor (Cuba)
Dor e Glória (Espanha) - Na Netflix
O Menino que Descobriu o Vento (Reino Unido)
Fúria Feminina (Vietnã)
*No Festival de Gramado