No Rio de Janeiro dos anos 1950, as irmãs Eurídice e Guida são quase inseparáveis. A primeira tem ambições profissionais. A segunda deseja viver um grande amor. Adultas, seguem caminhos opostos — e nenhuma parece muito feliz com isso. Em comum, as duas se sentem invisíveis em uma sociedade onde as mulheres de boa reputação cuidam do lar e da família e as que são livres pagam um preço bem caro por isso.
O parágrafo descreve, superficialmente, o enredo do filme A Vida Invisível, que estreia nos cinemas nesta quinta-feira (21) e é o representante brasileiro na disputa por uma vaga na categoria de melhor filme estrangeiro no Oscar.
O longa-metragem é dirigido por Karim Aïnouz e tem roteiro assinado por Murilo Hauser, coescrito por Inés Bartagaray com colaboração do cineasta. Ele foi livremente inspirado no livro A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, primeiro romance da jornalista e escritora Martha Batalha. Publicado em 2016, conquistou um feito raro para uma estreia: teve seus direitos adquiridos para o cinema no ano seguinte ao lançamento.
A começar pelo título, que no filme teve subtraído o nome de Eurídice, as duas obras são bem diferentes uma da outra. Principalmente no tom. Enquanto o livro é leve, ágil e muitas vezes bem-humorado, sua adaptação para o cinema é forte, impactante, um “melodrama tropical”, como definiu o diretor. Mas ambos passam o mesmo recado.
É possível assistir ao filme sem conhecimento algum sobre o livro. Um não depende do outro. São experiências totalmente diferentes — mas podem ser complementares.
Abaixo, veja as principais diferenças entre as duas obras. Sem spoilers, deixo um recado: a principal delas muda o desfecho de cada uma.
O tom
No livro, a história é contada em 179 páginas. De linguagem fácil, é uma leitura rápida e envolvente. As principais características são a riqueza de detalhes e o humor que a autora usa para descrever os altos e baixos nas vidas das irmãs e das pessoas que as rodeiam — embora a situação de opressão, pano de fundo de toda a história, seja revoltante em alguns aspectos. Ainda assim, entre uma reflexão e outra, é bem comum se pegar rindo durante a leitura.
E isso é algo que não acontece no filme. Em pouco mais de duas horas de projeção, algumas cenas provocam desconforto, como a noite de núpcias de Eurídice (sem mais spoilers). Dramático e forte, tem momentos de fazer chorar os mais sensíveis e um final emocionante, com a presença de Fernanda Montenegro em cena.
Os personagens
O título do livro foca em Eurídice Gusmão, mas a trama vai além da vida da caçula do casal de imigrantes portugueses. Acompanha também a rotina da fofoqueira Zélia, do solteirão Antônio, dono da papelaria da esquina e sua mãe moribunda, da ex-prostituta Filomena, que se dedica a cuidar de crianças para que as mães possam trabalhar, entre outros. São muitos os personagens e cada um ganha espaço.
Já no filme, o foco está ora em Eurídice, ora em Guida — aliás, às vezes a irmã mais velha ganha mais tempo em cena. O que pode explicar a alteração no título, sem nomear nenhuma delas.
Os destinos
Nas duas histórias, Eurídice tenta usar a arte para se expressar. No livro, ela tem múltiplos talentos. Faz o melhor bolo do bairro, lista todas as receitas em um livro, tem o sonho de publicá-lo. Tudo, porém, é vetado pelo marido Antenor — interpretado de forma meio infantilóide por Gregorio Duvivier no filme. Também na versão do cinema, Eurídice quer ser pianista (e essa trilha contribui ainda mais para a dramaticidade da trama), mas se vê tendo que adiar testes para participar de uma companhia para dar conta das tarefas da casa.
Já Guida tem um destino razoavelmente (frisa-se) parecido no livro e filme: apaixona-se por um homem, vai embora com ele, mas acaba abandonada à própria sorte, grávida e expulsa de casa pelo pai — sem que a mãe possa intervir, já que é a “sombra do marido”, como diz a própria Guida em uma cena. E é uma mudança em seu caminho após a maternidade, principalmente, que difere a versão do filme da do romance.