Diretor de A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, filme vencedor da mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes 2019 — importante seção paralela do mais prestigiado certame do cinema internacional — Karim Aïnouz acredita que o reconhecimento dado a ele aos também brasileiros Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, ganhadores do Prêmio do Júri na seleção principal, com Bacurau, entra para a história do Brasil.
— Está começando a cair a ficha. Nos dias seguintes à premiação, você fica um pouco atordoado. É muito bom para o filme e para o cinema brasileiro. Estou me acostumando com essa ideia e tentando entender um pouco o que aconteceu - disse Karim em entrevista ao programa da Rádio Gaúcha Timeline desta segunda-feira (27).
A Vida Invisível de Eurídice Gusmão é uma adaptação do livro homônimo da escritora Martha Batalha e conta a história de duas irmãs que têm suas vidas marcadas por relacionamentos abusivos com homens machistas. O realizador cearense, conhecido por filmes como Madame Satã (2002), O Céu de Suely (2006) e Praia do Futuro (2014), destacou a relevância da premiação em Cannes:
- A mostra (Um Certo Olhar) é muito importante porque fala de um cinema em renovação. Foi nessa mostra que exibi Madame Satã, muitos anos atrás. Para mim, tem um significado especial. Uma das coisas mais importantes desse prêmio é jogar luz no filme e torná-lo internacional. A premiação precipitou a venda do filme em vários países. Até sexta-feira, a gente tinha vendido em 10 países. Hoje, deve ter 30. É muito importante para a internacionalização da cinema brasileiro. É importante que o cinema brasileiro seja visto não só no Brasil, mas no mundo. A premiação é um selo de qualidade, faz com que o filme tenha longa vida.
Karim também considerou que o prêmio é fundamental neste momento em que o setor cultural no Brasil encara questionamentos e estrangulamento de recursos por parte do governo:
— Está havendo uma criminalização da classe artística por parte de setores do poder. Isso é muito perigoso. Esse prêmio só reforça que as políticas de incentivo à cultura dos últimos 15 anos — estamos falando do governo Lula e Dilma, sim — foram políticas que estão dando frutos. O que a gente viveu em Cannes neste fim de semana é um fato que entra para a história do Brasil. Qualquer tipo de contestação à política audiovisual, à importância da cultura, a importância da produção artística tem que parar. Esse prêmio é um prêmio para uma geração. Eu e o Kleber somos da mesma geração, passamos pelos mesmos lugares. Esse reconhecimento vai estimular que uma nova geração possa continuar a fazer cinema, fazer cultura.
O diretor comentou ainda que seu filme espelha a histórica luta das mulheres por igualdade de direitos, tema sempre atual no Brasil .
— A gente não pode subestimar o poder do cinema, pelo contrário. É um filme que fala da década de 1950 para poder falar de hoje. Fala do conservadorismo que imperava naquela época, do patriarcado, da questão de que a família tinha de estar acima de tudo, independentemente se essa família, para existir, tivesse que destruir o outro.
Karim lembrou que sua mãe o criou sozinha. Era uma mulher que não podia trabalhar por ser separada, limitando-se às tarefas dentro de casa e ao ofício de costureira.
— Minha mãe me criou sozinho, minha avó também criou as filhas sozinhas. Eram vidas muito difíceis. Queria prestar uma homenagem a essas mulheres e a todas as mulheres dessa geração. Não foi fácil chegar onde elas estão. A gente tem que olhar para essas mulheres e reconhecer a força delas. Antes de qualquer coisa, é um filme anti-patriarcado. O que a gente está vivendo no mundo é algo muito sério com esses governos de extrema-direita, em que a grande razão é a crise do patriarcado, que é um pânico que os homens têm de estarem perdendo poder. Inicialmente, o filme era muito mais o retrato de uma geração e passou a ter uma dimensão política maior conforme os anos passaram. Não dá para esquecer que o Brasil é um dos países do mundo com maior número de feminicídio. Não dá para esquecer que o Brasil é um dos países com maior número de mães solteiras, que são demonizadas.
Fernanda Montenegro faz uma participação especial em A Vida Invisível de Eurídice Gusmão. Sobre ela, Karim destaca:
— É um ser humano gigante. Ela sim, representa o Brasil, antes de qualquer um de nós. É um ícone não só do cinema, mas da cultura brasileira. Quando falo que o filme é o retrato de uma geração, é o retrato de uma geração dela. A Fernanda nasceu no Rio, de uma família de operários, foi atriz em um momento em que o ator era superdiscriminado. Ninguém mais poderia representar a geração dela.