Após três fins de semana com sessões de pré-estreia, A Vida Invisível entra em cartaz nesta quinta-feira (21) nos cinemas. Almodovariano e feminista, o melodrama de Karim Aïnouz, 53 anos, narra a jornada de duas mulheres no Rio de Janeiro a partir dos anos 1950. Elas se chamam Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stocker). São irmãs, mas foram separadas em decorrência da intolerância dos pais sobretudo diante do comportamento libertário e intempestivo desta última.
— É uma homenagem à geração da minha mãe e das minhas tias — define Aïnouz, que trabalhou no roteiro a partir do romance A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha.
O cineasta, que nasceu no Ceará e vive na Alemanha, atendeu a GaúchaZH em Los Angeles, em meio à campanha pela promoção do filme visando a uma indicação ao Oscar 2020.
A Vida Invisível já venceu a mostra Um Certo Olhar, no Festival de Cannes, e é um dos mais cotados para estar entre os indicados ao Oscar de melhor filme internacional (estrangeiro), segundo publicações norte-americanas como a Hollywood Reporter. Nesta entrevista, Aïnouz diz estar em busca de um diálogo com o grande público.
— Quem foi que disse que o cinema nacional, salvo exceções, tem de ficar restrito a espaços diminutos? Está na hora de reencontrarmos o nosso público — justifica.
Além disso, aborda referências que incluem a tradição de teledramaturgia do país e a política nos filmes atuais.
O apelo à emoção é uma marca de seus longas-metragens, mas A Vida Invisível é o que tem a estrutura mais próxima do melodrama clássico. Por que realizar um filme assim hoje?
É um exercício interessante pensar como e por que a emoção entra em um filme. Eu me interesso antes pelos personagens do que pela história como um todo. Costumo trabalhar com pessoas marginais, que não têm aquele perfil que se destaca na História. Me interessa a periferia da História. Penso que o cinema serve para isso, para iluminar essas figuras que estão à sombra dos grandes acontecimentos. E o melodrama sempre esteve comigo, particularmente o das telenovelas brasileiras, Janete Clair, Selva de Pedra (1972), sabe? Em A Vida Invisível, quis fazer as pazes com a escola do cinema narrativo. Achava — e continuo achando — que é a forma mais adequada de contar as trajetórias dessas personagens, porque faz com que mais pessoas as descubram. Mais público. Acredito que é hora de as pessoas se unirem em torno das vidas marginalizadas, e o cinema é um meio perfeito para isso.
Por que as telenovelas e especificamente Selva de Pedra?
Tem algo bem pessoal aí. Fui criado em meio a mulheres, e justamente dessa geração da Guida e da Eurídice. Selva de Pedra eu via com minha mãe e minhas tias. Queria fazer um filme para essa geração. A Vida Invisível é uma homenagem a minha mãe e minhas tias. À geração delas. Quando lembro daqueles momentos com elas, me vem uma sensação que não é exatamente de tristeza, mas de uma melancolia... Foi isso que busquei passar no filme. Essas mulheres tiveram de buscar força em ambientes hostis, viveram às sombras. E ainda estão aí, firmes e fortes — assim como a Fernanda Montenegro (que está no elenco).
Seus filmes, em particular O Céu de Suely (2006), são associados à ideia do “cinema de fluxo”, com tempo cênico nem sempre tão ágil como, por exemplo, o das novelas da Globo. Não à toa, esse tipo de produção dialoga com públicos mais restritos. Isso o incomoda?
Sim. Parece que nós, cineastas brasileiros, fomos colocados em um lugar restrito, um nicho. Quem foi que disse que a produção nacional, salvo exceções, tem de ficar restrita a espaços diminutos? Está na hora de reencontrarmos nosso público. E isso não significa abrir mão de filmes que buscam essa sensorialidade de que você fala. Acredito que justamente os filmes de gênero — como o melodrama — têm o poder de ser consistentes e promover reflexões a partir das sensações, e não de eventuais invenções da linguagem. Minha assinatura está aí, nesse uso que faço do gênero. É possível manter a assinatura do autor dialogando com um público mais amplo. Acredito muito nisso.
Seus filmes têm figuras de personalidade marcante, tanto femininas (O Céu de Suely, O Abismo Prateado) quanto masculinas (Madame Satã, Praia do Futuro), mas você é um criador de grandes personagens mulheres. Só neste filme, são duas. De onde vem isso?
Cada filme tem uma história. O “feminino” como tema... Não é que me assombre, mas parece que faz parte do meu DNA. Acho que tem a ver com minha criação sempre próxima das mulheres. A gente acaba sendo refletido pelo que faz, o trabalho reflete o que somos. E sou alguém que tem essa trajetória próxima do feminino. Não me sinto tão à vontade, por exemplo, para fazer um filme sobre a vida de um senhor de 80 anos, porque pouco conheci meu avô. Sei que pode ser uma armadilha, que a gente tem de buscar a alteridade, mas sou mais honesto comigo mesmo quando trabalho com personagens que me inspiram.
A Vida Invisível começou quando o (produtor) Rodrigo Teixeira me presenteou com o livro da Martha Batalha. Li e imediatamente lembrei da minha mãe. Guida me fez lembrar demais dela. Fui mergulhando na história com isso em mente. Quis fazer um filme sobre essa personagem, um filme “dela”. Ou seja, parti da personagem. Aos poucos fui entendendo o quanto ela e também a Eurídice são representativas da geração delas. Elas têm isso de representarem muita gente, mas sem perder particularidades que são muito delas e só delas. Eu me apaixonei pelas duas, perdidamente. Os meus filmes de fato acontecem quando eu me apaixono perdidamente pelas personagens. Acho que essa explicação responde a sua pergunta (risos).
O roteiro excluiu personagens secundários do livro, mudou bastante coisa. Também excluiu o nome da Eurídice do título, o que inclusive faz mais sentido com a adaptação, já que se trata de uma história de duas vidas invisíveis, e não apenas da invisibilidade de Eurídice.
O título original do filme era mesmo A Vida Invisível, embora o livro tenha o nome da Eurídice. Mas, quando o projeto foi selecionado para o Festival de Cannes, nos perguntamos se não seria melhor ter algo que identificasse o filme com o Brasil, que afinal é algo marcante na narrativa. Por isso trouxemos o nome da Eurídice de volta e ele foi exibido em Cannes como A Vida Invisível de Eurídice Gusmão. A partir daí começaram a entrar os distribuidores internacionais, que adaptam o título conforme cada país. E não me meto muito nessa parte, acho que é uma questão de mercado, de distribuição, mesmo.
Na Alemanha, o título ficou Die Sehnsucht der Schwestern Gusmão, ou seja, A Saudade das Irmãs Gusmão. Agora, de fato, a Guida, como eu falei antes, me aproximou da história. Foi por meio dela que mergulhei na trama. Então, sim, acho que um título que não cite só a Eurídice faz mais jus ao que está no filme.
Fernanda Montenegro tem uma participação especial emotiva na trama. Mas, além do afeto, acabou ganhando caráter político, visto que a atriz se tornou uma voz ativa contra a censura (posou para um ensaio fotográfico que abordava o assunto e falou sobre o tema em entrevistas, tendo sido rebatida por Roberto Alvim, nomeado pelo governo Bolsonaro diretor da Fundação Nacional das Artes, a Funarte). Como foi a entrada dela no projeto?
Acompanhei tudo, inclusive a grosseria e a estupidez contra a Fernanda, mas a verdade é que isso ocorreu após a participação dela em A Vida Invisível, depois das filmagens e mesmo das primeiras sessões, em Cannes (em maio). Tem uma coisa sobre esse projeto. Eu achava que estava muito identificado com as personagens femininas após O Abismo Prateado (2011), por isso quis fazer um filme sem mulheres, só com homens – Praia do Futuro (2014). Em seguida, fiz um documentário sobre os refugiados na Alemanha, Aeroporto Central (2018). A Vida Invisível é uma volta ao feminino. E a Fernanda era um nome que eu queria muito trazer para esse reencontro. A figura dela, a presença que ela tem, tudo o que ela é e representa como grande dama da nossa dramaturgia. É uma presença política, nesse sentido, sim. Além de afetiva, claro.
O afeto pode ser político?
O ato de fazer um filme é político, ainda mais nestes tempos de perseguições à arte e ao pensamento. O cinema une as pessoas, que se emocionam juntas, entende? Isso é político. O caso da Fernanda é interessante para pensar isso, inclusive. Ela tem tanta dignidade na expressão, carrega isso no rosto e nos emociona assim. Ela carrega as marcas do tempo. Parece que foi à guerra, mas voltou e está aí, vivíssima com seus 90 anos. Pensei na Fernanda quando vislumbrei a participação dela exatamente assim: como uma veterana que sobreviveu a uma guerra.
Mudei o final do filme quando pensei nisso. E não faz tanto tempo assim. Lembro porque nos encontramos pela primeira vez quando o (ex-presidente) Lula estava sendo preso. E agora o filme chega ao público logo em seguida à soltura. É uma coincidência... Fazer filme demanda um certo tempo. A gente vai aglutinando o que acontece nesse tempo. Não tem como não refletir o que acontece na sociedade, não tem como não ser político hoje em dia.