Um Dia de Chuva em Nova York (A Rainy Day in New York). Voluntária ou involuntariamente, o título do filme que estreia nesta quinta-feira (21) minimiza, em intensidade e em alcance, o temporal que fustiga Woody Allen. Aos 83 anos, o cineasta americano vem sendo isolado por parte da indústria e da comunidade artística de seu país. O que pesa contra ele?
O principal é a acusação de abuso sexual que Dylan Farrow, filha adotiva do diretor e da atriz Mia Farrow, diz ter sofrido em 1992, quando tinha sete anos. Ela trouxe o caso de volta à tona em 2014, em uma carta que escreveu ao jornal The New York Times. Ninguém esquece, também, que a atual esposa de Allen, Soon-Yi Previn, era sua enteada, com quem ele mantinha um caso extraconjugal – descoberto por Mia quando a filha adotiva tinha 19 anos.
Em janeiro de 2018, o caldo engrossou quando Dylan, em entrevista para a rede de TV CBS, questionou por que seu pai estava sendo poupado pelo #MeToo, o movimento mundial contra o assédio sexual e o estupro, e o jornalista Richard Morgan publicou no Washington Post um artigo em que, ao vasculhar roteiros e contos nos arquivos de Woody, descreve "sua fixação por garotas" e a "objetificação do corpo feminino" por personagens de meia-idade.
Esse artigo foi bastante contestado – entre outros motivos, por se concentrar em coisas que Allen escreveu há mais de 40 anos –, mas ajudou a encorpar a chuva ácida sobre o autor de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977), Hannah e suas Irmãs (1986) e Meia-noite em Paris (2011), todos vencedores do Oscar de roteiro original (categoria em que ele concorreu 16 vezes!). Paralelamente, atores e atrizes como Colin Farrell, Greta Gerwig, Mira Sorvino e Ellen Page declararam-se arrependidos por terem trabalhado com Allen; e Timothée Chalamet e Rebecca Hall, que atuam em Um Dia de Chuva em Nova York, doaram seus cachês para instituições de apoio a vítimas de abuso sexual e de incesto.
A reputação não foi a única atingida: ainda em 2018, a Amazon, que havia firmado um contrato para bancar e distribuir cinco filmes do diretor (o primeiro deles foi Roda Gigante, de 2017), cancelou o lançamento de Um Dia de Chuva em Nova York e rompeu o acordo. Allen processou a empresa, em uma ação de mais de US$ 68 milhões, mas os dois chegaram a um acordo no começo de novembro, com valores não divulgados. Enquanto isso, a Europa segue prestigiando o diretor: a comédia romântica abriu o Festival de Cinema Americano de Deauville, na França, antes de entrar em cartaz em uma série de países, e San Sebastian, na Espanha, serviu de cenário para seu próximo filme, Rifkin's Festival, que traz no elenco o austríaco Christoph Waltz, o francês Louis Garrel e os espanhóis Sergi López e Elena Anaya.
O cineasta, que recentemente afirmou ser "100% a favor do #MeToo", sempre rebateu as acusações de Dylan, que considerou "ridículas", e disse que Mia Farrow havia manipulado a filha. Ainda entre 1992 e 1993, a polícia investigou o caso, mas, por falta de provas, a promotoria não o levou adiante. O médico John M. Leventhal, depois de nove entrevistas com a menina, concluiu que ela teria inventado a história ou, de fato, sido influenciada pela mãe. Filhos da atriz ficaram em trincheiras opostas: Ronan Farrow, jornalista que em 2017 revelou três casos de assédio sexual cometidos pelo produtor americano Harvey Weinstein, então um gigante de Hollywood, acredita em Dylan. O pai adotivo é defendido por Moses Farrow, que em seu blog A Son Speaks Out fala sobre maus-tratos e negligência por parte de Mia, relação que teria levado dois irmãos ao suicídio.
Como se fosse para se proteger dessa tempestade familiar, Woody Allen ergue o guarda-chuva do trabalho: mesmo octogenário, segue filmando no ritmo de um longa-metragem por ano – Um Dia de Chuva em Nova York é o seu 48º desde 1966. No set, parece criar uma realidade à parte, um mundo paralelo em que ele continua jovem e em que sua amada Nova York não apresenta sinal algum de sujeira; em que reencena quase que eternamente um triângulo amoroso, variando apenas os vértices; em que a geração millennial não dá bola para iPhones ou redes sociais, preferindo falar dos filmes de Akira Kurosawa e dos versos de Cole Porter; em que mesmo garotas inteligentes são retratadas como ingênuas, a "mulher burra" (e ainda por cima loira) que serve de escada e de alvo para piadas pedantes, um objeto sexual, uma presa deslumbrada por seus predadores, os três homens mais velhos que surgem em seu caminho.
Incorporando a prosódia e os trejeitos de Allen, mas com certa afetação na fala e uma considerável economia na gesticulação, Chalamet interpreta o protagonista, um universitário com o improvável nome Gatsby Welles – em alusões ao célebre romance de F. Scott Fitzgerald e ao genial cineasta de Cidadão Kane. Embora a conta bancária e o estilo bon vivant o aproximem d'O Grande Gatsby, seu parentesco, por causa da rebeldia contra os pais, é maior com o Holden Caulfield de O Apanhador no Campo de Centeio, outro livro seminal da ficção norte-americana. Com a grana extra que arrecada em mesas de pôquer, o jovem convida a namorada caipira, Ashleigh (Elle Fanning), para um fim de semana em Nova York.
Lá, um lugar mágico onde a fotografia de Vittorio Storaro garante a uma trama contemporânea a nostalgia característica do diretor, onde o nome de Gatsby não gera espanto, mas o de Ashleigh sim, os pombinhos voarão solo. Aspirante a jornalista, a moça agarra a oportunidade de entrevistar um cineasta famoso em crise criativa, Roland Pollard (Liev Schreiber). Ela será assediada por ele e também por seu roteirista (Jude Law) e por um galã (Diego Luna). Alheio às vicissitudes da namorada, Gatsby se envolve com uma atriz, Shannon (Selena Gomez), e, para confrontar a mãe, contrata uma prostituta de luxo – que também motivará constrangedores chistes sexuais.
Voluntária ou involuntariamente (é preciso dar o benefício da dúvida, afinal, o filme foi rodado antes de o temporal se intensificar), Um Dia de Chuva em Nova York parece espelhar o que Woody Allen pensa sobre o que dizem dele. É como se o cineasta se sentisse realmente imune. Seu entorno não gera um drama moral como os grandiosos Crimes e Pecados (1989) e Match Point (2005), mas torna-se material para comédia, argamassa para erguer um mundo povoado por mulheres que são prostitutas ou ex-prostitutas, adúlteras ou bobas, ou apenas fantoches nas mãos do roteirista (vale para Ashleigh, jogada de um personagem para outro, mas também vale para Shannon, que só existe para cumprir fantasias masculinas). Um mundo em que a traição do ator garanhão não é flagrada, em que o motivo fútil para o irmão de Gatsby não querer se casar com a noiva (a risada dela) merece só um puxãozinho de orelhas antes de desaguar na zombaria autorizante, em que o protagonista, o jovem alter ego de Allen, dá o pé na namorada e a deixa falando sozinha – na verdade, nem isso acontece: ela é silenciada, e ele se safa sem maiores arranhões para curtir o que importa, o seu prazer. Um mundo em que os homens não são condenados.