Matt Damon e Christian Bale, Ford vs Ferrari. O cartaz do filme induz o espectador desavisado a achar que o astro da tetralogia Jason Bourne duelará nas pistas com o Batman da trilogia de Christopher Nolan. Como se estivéssemos diante de um derivado de Rush (2013), a excelente cinebiografia sobre a rivalidade entre os pilotos de Fórmula-1 Niki Lauda e James Hunt. Mas, ao contrário do que o alinhamento dos nomes no pôster sugere, os atores não interpretam gigantes da indústria automobilística, e seus personagens estão do mesmo lado.
O espectador brasileiro desinformado também pode, no começo do filme, se sentir como aquele sujeito que vai ao mecânico e o escuta falar sobre a rebimboca da parafuseta. As cenas mostram os preâmbulos e os bastidores de uma história muito americana e de uma corrida que não tem, no nosso país, a mesma popularidade da F-1 ou mesmo da Indy: a de como, nos anos 1960, a Ford resolveu desenvolver um carro para enfrentar a hegemonia da italiana Ferrari nas 24 Horas de Le Mans, na França.
No filme dirigido por James Mangold (de Johnny & June e Logan), Damon encarna Carroll Shelby, o primeiro piloto dos Estados Unidos a vencer a prova, em 1959 – vitória reconstituída na bela introdução. Ele precisa abreviar sua carreira por causa de um problema cardíaco e passa a atuar como empresário. Bale é um pai de família inglês à beira da falência, o quarentão Ken Miles, exímio como mecânico e atrás do volante, mas péssimo na gerência dos negócios e no trato com as pessoas. Enquanto isso, nos escritórios da Ford, o executivo Lee Iacocca (Jon Bernthal, o Justiceiro do seriado homônimo) vê-se desafiado a bolar uma ideia que garanta seu emprego – o patrão, Henry Ford II (Tracy Letts), está fulo da vida com a queda nas vendas. A solução é associar a marca às aspirações da juventude, como sexo e perigo. Ou seja: entrar no glamoroso mundo das corridas.
Como você já pode imaginar, essas três estradas vão convergir. Para continuar nas analogias automobilísticas, Ford vs Ferrari parece feito em uma linha de montagem, na qual podemos antever seus obstáculos – desde um problema técnico até a interferência negativa de outro engravatado da Ford, Leo Beebe (Josh Lucas), mais preocupado com o marketing do que com o esporte. Com duas horas e meia de duração, por vezes o filme é cansativo como a corrida de Le Mans, mas, tal qual a prova francesa, guarda uma boa dose de emoção para as últimas curvas – especialmente se você, como eu, não souber nada da história original.
Até chegar o momento de correrem lágrimas, a dica é sentar na carona ora de Shelby, ora de Miles, para sentir a adrenalina, admirar a paisagem (a fotografia de Phedon Papamichael, indicado ao Oscar por Nebraska, é belíssima), curtir a trilha sonora (tanto a composta por Marco Beltrami e Buck Sanders quanto as canções de Nina Simone, The Byrds e The Sonics, entre outros) e refletir – sim, Ford vs Ferrari é sobre velocidade (e é feliz em criar a ilusão de que seu elenco está andando em carros a 200, 300 km/h), mas permite parar para pensar. No caso, em como este filme, como eu disse lá em cima, conta uma história muito americana.
Repare no parágrafo de apresentação dos principais personagens: todos estão em busca daquilo que é inerente à história e à ficção dos EUA, a segunda chance. Pode-se dizer que o país nasceu de uma segunda chance, a dos pobres e degradados ingleses que partiram para a América no começo do século 17. A paixão por carros e estradas também remete às origens da nação, ao desbravamento do Oeste – a diferença é que, aqui, os americanos querem conquistar um território a Leste, o francês, e derrotar não os indígenas, mas os italianos. Ford vs Ferrari ilustra ainda a cultura de ser o número 1 e o culto ao self-made man, o homem que faz o próprio caminho. Aliás, esse individualismo acaba sendo valorizado, visto que os heróis pagam um preço alto quando cedem aos interesses corporativos. Enfim: não foi surpresa ver o filme entre os concorrentes ao principal Oscar, ainda que só tenha recebido outras três indicações em categorias técnicas (montagem, mixagem de som e edição de som).