Meu amigo imaginário já assistiu a Doutor Sono (Doctor Sleep), que entra em cartaz nos cinemas nesta quinta-feira (7), e topou responder algumas perguntas sobre a inesperada continuação de O Iluminado (1980).
Por que, quase 40 anos depois, fazer uma sequência de O Iluminado?
Na verdade, foram 33 anos. Ou, para ser preciso, 36. É meio complexo.
Como assim?
Não sei se tu tens tempo nem espaço, então vou resumir. O livro O Iluminado é de 1977.
O filme, de 1980. Mas, apesar de a adaptação ter virado um clássico do cinema de horror,
e de certamente ter atraído mais leitores, seu escritor, Stephen King, foi um crítico de primeira hora do que fez o diretor Stanley Kubrick (1928-1999). Então, em 2013, 33 anos depois do filme, 36 depois do livro, ele lançou uma continuação, Doutor Sono.
Fazer uma continuação tanto tempo depois é um caso raro, não?
Sim, talvez Doutor Sono esteja quebrando um recorde de intervalo. Mas houve precedentes. Entre Blade Runner –
O Caçador de Androides e Blade Runner 2049, por exemplo, foram 35 anos. Tron – O Legado saiu 29 anos depois do original. E um quarto de século separa Desafio à Corrupção de A Cor do Dinheiro.
Por que o escritor americano nunca gostou da versão cinematográfica de O Iluminado?
Basicamente, ele reclama da falta de fidelidade, especialmente em relação ao protagonista. No livro, o aspirante a escritor Jack Torrance é um bom pai que, aos poucos, vai sucumbindo ao alcoolismo e ao isolamento no Overlook, um hotel assombrado onde ele vai trabalhar como zelador durante os cinco meses em que o lugar fica fechado por causa da neve. No cinema, a bebida mal aparece, e desde os primeiros minutos o personagem interpretado pelo Jack Nicholson é detestável. Mas um detestável adorável, né? A gente é capaz de decorar e repetir todas as suas falas e seus trejeitos.
Para assistir a Doutor Sono, é obrigatório ter visto O Iluminado? Vale lembrar que uma parcela expressiva do público de hoje nem tinha nascido na época do primeiro filme.
Verdade. Só para referendar o que tu disseste, a Motion Picture Association of America (MPAA), que representa os cinco maiores estúdios dos EUA, fez um levantamento em 2017 e mostrou que 58% dos espectadores tinham entre dois e 39 anos. Mas respondendo a tua pergunta: olha, como eu já assisti diversas vezes a O Iluminado, estou tão impregnado por sua história e, principalmente, por suas imagens poderosas que não consigo fazer um exercício de enxergar com o olhar de um inocente. Acho que quem nunca viu o filme do Kubrick pode ficar boiando no início de Doutor Sono, porque ele começa de onde
O Iluminado parou. Inclusive o ano é 1980. E a música... Chega a arrepiar quando ouvimos novamente aquela trilha em sintetizador. A essa altura do campeonato, não deve ser spoiler dizer que o gurizinho Danny e sua mãe sofreram o diabo no hotel Overlook. Agora eles aparecem em cena tentando remendar suas feridas emocionais. Escolheram atores parecidos com os originais. A Alex Essoe, que faz a Wendy, fala igualzinho a Shelley Duvall. Se eu estivesse de olhos fechados, poderia jurar que era a mesma atriz. Há outras surpresas para os fãs, vale prestar atenção na cenografia e em enquadramentos.
Mas, pelo que o trailer mostra, agora o Danny virou um adulto, não?
Um adulto cheio de problemas, obviamente, dado o passado traumatizante. Ele é vivido pelo Ewan McGregor, um ator que sempre empresta sua simpatia natural aos personagens. Danny tinha aposentado seu diminutivo – agora prefere que o chamem de Dan – e seus poderes mediúnicos, mas ele vai precisar voltar à ativa quando uma outra criança mágica, a menina Abra (a novata Kyliegh Curran), passa a ser caçada pelos vilões da história. Aliás, essa é uma das coisas bacanas de Doutor Sono: com paciência – são duas horas e meia de duração –, o filme vai apresentando três tramas que depois se entrelaçam. A do Dan, a da Abra e a da Rose Cartola, uma bruxa má que lidera um grupo meio hippie, meio vampiro, o Verdadeiro Nó, que se alimenta de crianças especiais.
Nossa! A turma é barra-pesada.
Arram. Só que o público acaba fascinado pela Rose Cartola, graças à interpretação da Rebecca Ferguson, a atriz que faz a Ilsa Faust na franquia Missão: Impossível. É ela a verdadeira iluminada do filme. Rouba a cena a cada vez que surge, equilibrando sedução e crueldade. Praticamente todas as críticas que li elogiam sua atuação.
Tu recomendas o filme, então?
Pois sabes que eu saí dividido da sessão? Amei os dois primeiros terços, pelo surgimento de um novo universo ficcional e pela construção de uma atmosfera de medo e perigo, para a qual colabora, bastante, um truque sonoro: batimentos cardíacos, que por vezes são acelerados, pontuam o filme. O diretor Mike Flanagan, que também assina o roteiro e a montagem, é muito elegante na concepção visual, como ele já havia demonstrado na série A Maldição da Residência Hill e nos filmes Hush: A Morte Ouve e Ouija: A Origem do Mal, todos disponíveis na Netflix, se não me engano. Mas, como ele também mostrou nesses dois filmes, de vez em quando esquece da verossimilhança. Em Doutor Sono, há uma sequência que, mesmo em uma história cheia de elementos sobrenaturais, quebra a suspensão da descrença. Apela para uma arma tão comum – armas de fogo, ora – para combater magia. E quando Doutor Sono começa a recriar passos de O Iluminado, escorrega, quase caindo na paródia.
Por quê?
Explicar seria dar spoiler. Mas há cenas no Overlook – sim, o hotel também está de volta – que, em vez de provocar tensão, podem gerar aquelas risadinhas dos fãs que entendem a referência. E que, portanto, podem não funcionar com quem nunca viu O Iluminado. Como, aliás, essa nossa piadinha sobre amigo imaginário...
Mas eu li que o Stephen King aprovou o filme, né?
Sim. Ele disse que Doutor Sono redime O Iluminado. King leu o roteiro de Flanagan, que já havia adaptado o escritor em Jogo Perigoso (2018, também disponível na Netflix), e ficou feliz em ver que o diretor conseguiu pegar Doutor Sono, o livro, e, na visão do escritor, integrar naturalmente com O Iluminado de Kubrick. Essa redenção a que King se refere é a de Jack Torrance. Há uma cena comovente, e que, de novo, talvez só faça sentido para quem conhece o filme de 1980, em que Danny depara com um cenário visitado pelo pai. Ali acontece uma espécie de reconciliação, ainda que truncada. Ali, Danny diz uma frase que dá a dimensão da tragédia que se abateu sobre o pai, a do alcoolismo: "O homem toma uma bebida, a bebida toma uma bebida, e então a bebida toma o homem".
Bonito! Uma última pergunta: se alguém achar ridículo o modo como escrevi este texto,
o que eu digo?
Essa é fácil: "Muito trabalho sem diversão faz de Jack um bobão".