A língua inglesa é bastante majoritária no catálogo de filmes da Netflix, mas aqui e ali podem ser ouvidas vozes de cinematografias pouco frequentes no Brasil (sobretudo no circuito comercial). Pode-se visitar os quatro cantos do planeta - ops! Nestes tempos de terraplanismo, melhor não dar margem à mal-entendido: pode-se visitar todos os continentes sem sair de casa.
Minha volta ao mundo em 80 filmes começa pelo Sudeste Asiático: Fúria Feminina, do Vietnã, Suzzanna: Enterrada Viva, da Indonésia, e A Criada, da Coreia do Sul.
Os três não foram escolhidos aleatoriamente. Como os títulos indicam, são todos protagonizados por mulheres às quais foram impostas provações ou privações. A busca por vingança também une os títulos.
Em Fúria Feminina (Hai Phuong, 2019), do diretor Lê Van Kiet, a atriz Veronica Ngo (a Paige Tico de Star Wars: Os Últimos Jedi) interpreta Hai Phuong, uma cobradora de dívidas. Nesse trabalho, que é mal visto na cidadezinha onde mora, Phuong usa de frieza e força bruta. Ela é temida, mas não respeitada. E também perde pontos na reputação por ser mãe solteira de uma menina, May, costumeiramente hostilizada na escola. Quando a guria é sequestrada, a mãe fará de tudo para resgatá-la.
Com direção de Rocky Soraya e Anggy Umbara, Enterrada Viva (Bernapas Dalam Kubur, 2018) gira em torno de Suzzanna (Luna Maya), a esposa do gerente de uma fábrica, Satria (Herjunot Ali). Insatisfeitos com a recusa de Satria a um pedido de aumento salarial, quatro operários decidem assaltar a rica residência do casal. Aproveitando uma viagem de Satria a trabalho, armam o plano para uma noite de sábado, em que Suzzanna vai ao cinema na companhia de seus três empregados. Mas as coisas dão muito errado, e eles acabam matando a mulher –, que, por estar grávida, e seguindo uma lenda local, ressurge como um espírito vingador.
A Criada (Ah-ga-ssi, 2016) chegou a ser exibido nos cinemas de Porto Alegre e tem um diretor razoavelmente conhecido – eu, pelo menos, adoro Park Chan Wook, o realizador de Zona de Risco (2000), Oldboy (2003) e Lady Vingança (2005). A trama se passa na Coreia dos anos 1930, época em que o país (ainda não cindido entre Sul e Norte) estava sob ocupação do Japão. Sook-hee (Kim Tae-ri) é uma jovem contratada para trabalhar como criada na mansão – que mistura o estilo arquitetônico britânico com espaços típicos das residências orientais – onde a rica herdeira japonesa Hideko (Kim Min-hee) mora com seu tio, Kouzuki (Cho Jin-Woong). Este é um sujeito escroto que obriga Hideko a ser protagonista dos saraus literários sobre obras pornográficas nos quais vende livros falsificados como se fossem raridades. Sook-hee, na verdade, é uma vigarista que se infiltra lá para ajudar o galante pilantra Fujiwara (Ha Jung-woo), que se apresenta como conde para, primeiro, desposar Hideko e, depois, interná-la em um hospício e se apossar de sua fortuna. Ou seja, a japonesa é uma mulher duplamente acossada por homens. Conseguirá sua vingança?
Os três filmes despertam curiosidade sobre seu contexto. Fúria Feminina me levou a pesquisar sobre o sequestro de crianças no Vietnã, um problema real – reportagem do jornal inglês The Observer, em 2015, afirmou que 3 mil foram traficadas do Sudeste Asiático e escravizadas no Reino Unido. Enterrada Viva me fez procurar sobre sundel bolong, o mítico fantasma que é representado por uma mulher de cabelos compridos, vestido branco e um buraco nas costas – uma referência nada sutil à associação que os indonésios fazem com a prostituição. A Criada remeteu à história da longa e opressora ocupação japonesa na Coreia, que durou de 1910 até 1945 – só acabou com a rendição nipônica ao fim da Segunda Guerra Mundial.
Cada um tem um seu estilo, não necessariamente próprio. Fúria Feminina é uma espécie de Vietnã para ocidental ver. À narrativa que emula a estrutura e o tom de N filmes de ação (pense na franquia Busca Implacável, com Liam Neeson), soma-se uma direção de fotografia que trafega entre a exploração turística das belezas naturais do país e um olhar que perscruta suas mazelas. Os diálogos chegam a ser dispensáveis, e o desfecho é altamente previsível. Mas não faltam bons momentos. O sequestro de May, por exemplo, oferece um show de artes marciais e do emprego de frutas como armas. Veronica Ngo é uma atriz que merece ser mais vista – sua obstinação é contagiante e faz jus à história de caçador que um personagem conta: não se mexe com tigresa que tenha cria.
Enterrada Viva é longo (duas horas e cinco minutos) para a história que conta. Os diretores estendem-se em demasia no desenvolvimento da vingança de Suzzanna e concedem tempo exagerado para os três empregados, supostamente o respiro cômico do filme. O longa também incorre no humor involuntário: o fantasma tem uma risada estridente e caricata, movimenta-se sem fluidez e sua maquiagem vai ficando cada vez mais pesada, até chegar à de uma vocalista de banda gótica dos anos 1980. Seu grande acerto é na sequência do assalto à mansão. Ali, Rocky Soraya e Anggy Umbara se puxaram no desenho e na execução das cenas.
Dito isso, é claro que se eu tivesse de indicar apenas um desses três filmes, o escolhido seria A Criada. Que é o mais longo, com mais de duas horas e meia, e também o mais complexo, o mais inventivo, o mais elegante – ainda que a alta voltagem erótica do relacionamento entre Sook-hee e Hideko possa ruborizar algumas pessoas. Inspirado em um romance inglês, Fingersmith, ambientado na Grê-Bretanha vitoriana, Park Chan-wook fez um filme que a todo instante mostra a fricção entre culturas diferentes. Seu roteiro instigante, repartido em três atos, não entrega nada de bandeja ao espectador, que, pouco a pouco, vai sendo seduzido pela narrativa cheia de enigmas e dissimulações e pela suntuosidade visual. Embora embaralhe um tanto demais as cartas, é nítido o domínio do jogo cinematográfico, no qual o diretor, paciente mas vigorosamente, costuma mostrar que todos estão sempre encenando, que há um fino véu encobrindo as reais intenções dos personagens e das pessoas, e que a qualquer momento pode haver uma virada de mesa. Aposte suas fichas aqui.