Difícil definir o momento em que me apaixonei por Adoráveis Mulheres. Muitas cenas competem. Por exemplo, aquele lindo plano na praia, onde duas das irmãs March, a radiante Jo e a enferma Beth, conversam sobre a crise de criatividade da primeira e a iminência da morte que se abate sobre a segunda por causa de uma doença – que, no contexto do filme, os Estados Unidos da década de 1860, em meio à Guerra Civil, é a febre escarlatina, mas que, graças à sensibilidade do diálogo, poderia ser um mal do nosso tempo, a depressão. Ou quem sabe, mais para frente na trama, quando Amy, a aspirante a pintora e a esposa de um homem rico, trava com o bon-vivant de bom coração Laurie um debate sobre como, em uma sociedade patriarcal, o casamento é um acordo econômico, uma vez que à parcela feminina da população são escassas ou, no mínimo, desiguais as oportunidades de trabalho – mesmo no campo artístico, onde são os homens que determinam quem pode entrar no clube dos gênios (algo que soa ainda e lamentavelmente atual). Talvez eu tenha sido arrebatado mais cedo: Jo e Laurie dançando do lado de fora de uma festa na qual não se sentiam à vontade, tão animados que é como se fossem feitos um para o outro e só existissem os dois no mundo.
Um vaivém no tempo como esse, cheio de drama e de crítica social, mas também de, por que não?, alegria e romance, é um dos charmes de Adoráveis Mulheres (Little Women). Trata-se da sétima adaptação cinematográfica do romance (conhecido no Brasil como Mulherzinhas) publicado em 1868 pela americana Louisa May Alcott (1832-1888) – a primeira foi em 1917, e a mais recente era a de 1994, com Winona Ryder e Christian Bale. Dirigido por Greta Gerwig, o longa que estreou em 9 de janeiro concorre a seis Oscar: incluindo melhor filme, atriz (Saoirse Ronan), atriz coadjuvante (Florence Pugh) e roteiro adaptado. Também foram indicados os figurinos fascinantes de Jacqueline Durran e a arrepiante trilha sonora composta por Alexandre Desplat, dois habitués da festa da Academia de Hollywood. O longa ainda disputa algumas das premiações prévias, como a da Associação dos Produtores (PGA), a do Sindicato dos Roteiristas e o Bafta, o principal troféu do Reino Unido.
Grande parte desse encantamento se deve ao time de atrizes e sua diretora, que, juntas, fazem da sala de cinema uma Casa das Sete Adoráveis Mulheres. Confira:
Saoirse Ronan
É a alma e o pulmão do filme, Josephine March, a Jo, a escritora da família. Ela tem traços da própria Louisa May Alcott – na cena de abertura, ouve de um editor uma regra fundamental para histórias com protagonista feminina:
— Ou ela casa, ou ela tem de morrer. Tanto faz.
Mas Jo é um espírito indômito ("Deus ainda não enfrentou a minha vontade", ela diz a certa altura), uma personagem à qual Saoirse Ronan se entrega de tal maneira que, em alguns instantes, parece que vai saltar para fora da tela, de tão viva. Nova-iorquina filha de atores irlandeses, ela concorreu ao Globo de Ouro e, aos 25 anos, disputa pela quarta vez o Oscar. Foi indicada a melhor atriz por Lady Bird (2017), outra parceria com Greta Gerwig, e Brooklyn (2015) e como coadjuvante por Desejo e Reparação (2007). Curiosidade: estes dois últimos filmes também são adaptações cinematográficas de romances celebrados.
Florence Pugh
Outra jovem atriz – recém completou 23 anos – com um futuro brilhante pela frente, a começar por sua primeira indicação ao Oscar, na categoria de coadjuvante. A inglesa despontou em Lady Macbeth (2016) e, no ano passado, protagonizou o excelente Midsommar. Em breve, será vista como outra superespiã russa no filme solo da Viúva Negra.
Em Adoráveis Mulheres, Florence encarna Amy, a irmã March que, à primeira vista, é fútil e até cruel. Mas, na visão de Greta Gerwig, ela é a garota que diz mais claramente o que quer e a que mais se esforça para consegui-lo 0 "É significativo que durante 150 anos não tenhamos gostado dela", disse a diretora. "Talvez seja um símbolo do progresso que tenhamos mudado de ideia."
Com os olhos penetrantes e a voz grave de Florence, a personagem torna-se ainda mais forte. Fazendo jus à arte que escolheu, Amy resolve pintar seu próprio destino. Sábia, estimula Jo a voltar a escrever – "Contar uma história torna aquilo importante", uma frase que vai reverbera no belo epílogo, uma homenagem tanto a Alcott quanto à literatura.
Emma Watson
É desafiador para a atriz inglesa de 29 anos se descolar da imagem da corajosa Hermione Granger, a quem interpretou em oito filmes da série Harry Potter. Mas ela vem tentando. Recebeu elogios por As Vantagens de Ser Invisível (2012) e arriscou-se no thriller O Círculo (2017), por exemplo. Agora, depois de estrelar a refilmagem de A Bela e a Fera em carne e osso (2017), aparece como Meg, a irmã March que, voluntariamente, troca seu talento como atriz por uma vida como esposa e mãe. Não é fácil – não porque falte amor do ou pelo marido, mas porque falta grana. O embate entre seus sonhos 0 ou seriam os sonhos impostos pela sociedade? – e a realidade é brilhantemente sintetizado logo no começo do filme, quando Greta Gerwig, em cenas curtas, apresenta e define a personalidade das quatro irmãs.
Eliza Scanlen
Nome menos conhecido do elenco principal, a australiana de 21 anos viveu a Amma Crellin da minissérie Sharp Objects (2018). Em Adoráveis Mulheres, encarna Beth, a pianista e a mais frágil das irmãs March – foi por ser legítima herdeira do coração da mãe (capaz de doar a ceia de Natal da família para imigrantes pobres) que acabou contraindo a grave febre escarlatina. Participa de poucos diálogos, mas seu olhar ora generoso, ora assustado é bastante eloquente. E é em torno de Beth que gira boa parte do drama familiar.
Laura Dern
Por uma feliz coincidência, couberam à americana de 52 anos duas grandes falas, no cinema de 2019, sobre a luta feminina. Primeiro, em História de um Casamento, vimos seu antológico monólogo sobre dois pesos e duas medidas nos tribunais de custódia – aquele em que a advogada aponta que se espera a imperfeição dos pais, mas não se tolera a das mães, o que nada mais é do que a atualização da história de Jesus Cristo: Maria era uma virgem que deu à luz e que segura seu cadáver quando ele morre; Deus, o pai, "não apareceu nem para a trepada".
Sua frase como Marmee, a mãe das meninas March, pode não ser tão contundente, mas reflete, em um filme de época, a resignação sofrida de muitas mulheres contemporâneas às convenções sociais:
— Eu tenho raiva quase todos os dias da minha vida, mas 40 anos de prática me ensinaram a não demonstrá-la.
Meryl Streep
Recordista de indicações ao Oscar – já são 21, sendo 17 como melhor atriz e quatro como coadjuvante 0 e dona de três estatuetas, a americana de 70 anos dispensa apresentações. Na pele de tia March, a aristocrata da família, Meryl Streep é responsável por muitas das tiradas cômicas (algumas, diga-se, maldosas) do filme, como quando diz:
— Eu posso não estar sempre certa, mas eu nunca estou errada.
Greta Gerwig
Não faz muito tempo, seu nome estava ligado ao cinema alternativo e de baixíssimo custo americano (como Nights and Weekends, filme de 2008 que ela estrelou e codirigiu, com US$ 15 mil de orçamento). Hoje, aos 36 anos, Greta Gerwig é uma das únicas cinco mulheres já indicadas ao Oscar de melhor direção (por Lady Bird, de 2017, pelo qual também concorreu ao troféu de roteiro original) e dispôs de US$ 40 milhões para fazer sua adaptação do livro de Louisa May Alcott. No meio do caminho, contracenou com Ben Stiller, em O Solteirão (péssimo título brasileiro para Greenberg, de 2010) e com Al Pacino, em O Último Ato (2014), e concorreu ao Globo de Ouro como a protagonista de Frances Ha (2012), de Noah Baumbach, seu companheiro.
Em sua versão de Adoráveis Mulheres, indicada ao Oscar de melhor roteiro adaptado, Greta realçou o subtexto feminista – em uma recente entrevista, a diretora disse que o livro havia ficado "envolvido numa moralidade de cartão-postal de Natal".
— Quando voltei a lê-lo já adulta, percebi como era espinhoso, estranho e revolucionário - afirmou ao El País. — Uma das coisas de que gosto em Alcott é que seu feminismo não é excludente: vê como uma mudança em que mulheres e homens saem ganhando.
De fato, embora o foco esteja nas personagens femininas, no filme os homens não são uns bananas (tampouco vilões). Têm sentimentos – vide Laurie (Timotheé Chalamet, à vontade no papel) – e não evitam dizer verdades duras às mulheres, como faz o professor Friedrich Bhaer (o ator francês Louis Garrel, muito mais moço e bonito do que no original).
Um dos grandes acertos de Greta foi mudar a estrutura cronológica do livro (o que também a diferencia dos filmes anteriores). A narrativa se dá em dois tempos intercalados, o do presente e o de sete anos atrás. Os flashbacks foram cuidadosamente organizados e encenados para comparar e opor situações e emoções. Por exemplo, a dança de Jo com Laurie surge como uma memória da protagonista enquanto ela está em um baile com Friederich. A arquitetura de cena e a montagem são essenciais para o efeito pretendido. Nesse sentido, as duas sequências em que Jo desce a escada de casa aflita por Beth mostram-se uma peça da mais terrível simetria e da mais fina ourivesaria.