Às vésperas do bicentenário da independência do Brasil, estreia nesta quinta-feira (1º) nos cinemas A Viagem de Pedro (2021), filme dirigido por Laís Bodanzky e estrelado por Cauã Reymond que desconstrói a imagem heroica do primeiro imperador do país — Dom Pedro I (1798-1834), autor do célebre "Grito do Ipiranga" em 7 de setembro de 1822.
Na terça (30), a Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais anunciou A Viagem de Pedro como um dos seis títulos pré-selecionados para concorrer a indicação na categoria de melhor longa internacional no Oscar 2023. Os outros são Carvão, de Carolina Markowicz, A Mãe, de Cristiano Burlan, Marte Um, de Gabriel Martins, Pacificado, de Paxton Winters, e Paloma, de Marcelo Gomes. O escolhido será divulgado na segunda-feira (5).
Vencedor dos troféus de direção e ator coadjuvante (Sérgio Laurentino) no Festival do Rio, trata-se do quinto longa-metragem ficcional de Bodanzky, realizadora dos premiados Bicho de Sete Cabeças (2000), Chega de Saudade (2007), As Melhores Coisas do Mundo (2010) e Como Nossos Pais (2017). É, também, sua primeira obra de cunho histórico.
A trama se passa em 1831, durante a travessia do Atlântico em uma fragata inglesa, a Warspite, rumo à Europa. Já ex-imperador do Brasil, fugindo de ser apedrejado, doente e inseguro, Pedro (Cauã Reymond) busca forças físicas e emocionais para enfrentar seu irmão, Miguel, que usurpou o reino em Portugal. Na jornada que dura cerca de dois meses, acompanhado da sua segunda esposa, Amélia de Leuchtenerg (encarnada pela portuguesa Victória Guerra), e de Maria, sua filha com a falecida Leopoldina (Luise Heyer, a Doris de 1954 na série Dark), ele empreende uma viagem também ao passado. Vai rememorar sua chegada na então Colônia e sua administração à frente do Império. Vai refletir sobre seu relacionamento com as mulheres, como Domitila, a marquesa de Santos (vivida pela artista plástica Rita Wainer), vai lidar com sua impotência sexual e se envolver com personagens fictícias, como a escrava Dira (a também portuguesa Isabél Zuaa, de O Novelo). Vai sofrer crises de epilepsia e ter rompantes de raiva. E vai, conforme disse Reymond, agir como um ditador, apesar de se dizer liberal.
A viagem de Pedro ocorre em um cenário claustrofóbico, realçado tanto pela direção de fotografia do espanhol Pedro J. Márquez (de A Última Floresta) quanto pelo formato de tela — quadrado como em, por exemplo, O Farol (2019) e A Tragédia de Macbeth (2021). Com roteiro de Bodanzky, Luiz Bolognesi e Chico Mattoso, o filme reúne um elenco internacional — que se reflete nos diálogos, uma mistura de idiomas: português, inglês, francês, alemão, línguas africanas... Além da alemã Heyer e das portuguesa Guerra e Zuaa, destacam-se o irlandês Francis Magee (o comandante Talbot) e o ator nascido em Guiné-Bissau Welket Bungué (de Crimes of the Future), que faz o contra-almirante Lars, um ex-escravo. Outro personagem marcante é o chef interpretado por Sérgio Laurentino, o único que não se sente inferior a Pedro.
O que diz Laís Bodanzky
Em entrevistas que vem concedento desde o final de agosto, a diretora paulistana Laís Bodanzky, 52 anos, falou sobre a realização do filme A Viagem de Pedro. Confira trechos:
O bicentenário da Independência
"Não fizemos (o filme) para ser lançado agora, estreou no Festival do Rio do ano passado, mas, com a pandemia, aconteceu, a data se aproximou, nossa, não dá para fingir que não estamos no bicentenário."
Revisão histórica
"É muito importante olhar pra trás, revisitar nossas memórias, mas também saber quais são as fontes das nossas memórias. O olhar contemporâneo é sempre importante porque a sociedade muda. Olhar para o nosso passado, para a história do Brasil, sem um olhar contemporâneo, é fazer um filme velho. A gente faz parte de uma época que tem duas muito importantes pautas da nossa sociedade: o movimento feminista e o movimento Vidas Negras Importam. Estes movimentos sempre existiram. A mulher sempre foi oprimida na história da humanidade, né? Assim como os pretos no Brasil sempre precisaram resistir. São duas pautas importantes para refletirem no Dom Pedro, nessa história contada naquela época. Talvez o Brasil de 1831 não seja tão diferente do Brasil de hoje."
Dom Pedro I como "homem tóxico"
"Como é comum em outras nações, a história oficial brasileira foi escrita pelo ponto de vista de quem está no poder e sob interesses políticos e econômicos. Precisamos questionar as estátuas, discutir quem narra as histórias. Dom Pedro era o que hoje se chama um homem tóxico. Naquela época, contudo, era o que se esperava de um homem: patriarcal, machista, opressor de gênero. Este Dom Pedro que fazia questão de ter sua masculinidade divulgada publicamente para demonstrar poder, mas que tinha muita insegurança, está aí aos montes. Então, (o que o filme faz) é olhar para o passado para ter uma consciência do nosso presente e reconstruir o nosso futuro."
O desafio dos idiomas
"Foi realmente um grande desafio filmar cenas em que os personagens falam línguas diferentes. O intuito foi se aproximar ao máximo do que era o Brasil daquela época. Um Brasil onde a maior parte da população era preta, aliás, até mais do que hoje. Pretos que não estavam aqui porque queriam, foram arrancados de suas origens, de sua cultura, de sua religião. O protocolo da corte era francês. A embarcação era da Inglaterra. A Leopoldina era alemã. Essa salada cultural era a salada do Brasil. A ideia de usar vários idiomas foi para emprestar uma sensação de viagem no tempo."
Um filme sensorial
"A Viagem de Pedro é um filme sensorial. Convida o espectador a dar um mergulho interno no personagem, através da linguagem e da cenografia — os corredores de uma embarcação são apertados, em dois meses você enlouquece. O formato da tela ajuda a simular o olhar do buraco da fechadura, assim como as lentes utilizadas, antigas, ajudam a imaginar como seria um filme feito em 1831. A imperfeição nos interessava."