Principal estreia nos cinemas nesta quinta-feira (12) — são 10 salas em Porto Alegre —, O Homem do Norte (The Northman, 2022) é o terceiro filme dirigido por Robert Eggers. Os outros dois, A Bruxa (2015) e O Farol (2019), estão disponíveis em plataformas de streaming _ o primeiro em Amazon Prime Video, Globoplay, Netflix e Telecine, e o segundo, para compra (R$ 24,90) em Apple TV, Google Play e YouTube. Ambos valem ser vistos. Ou revistos.
A Bruxa é um expoente do horror folclórico contemporâneo e valeu ao estadunidense Eggers, hoje com 38 anos, o prêmio de melhor direção no Festival de Sundance. Também revelou a atriz Anya Taylor-Joy, que depois conquistou o Globo de Ouro e o troféu do Sindicato dos Atores dos EUA pela minissérie O Gambito da Rainha (2020). Na Nova Inglaterra do século 17, o cineasta acompanha a jornada de uma família cristã excomungada por causa das atitudes do patriarca, William (Ralph Ineson). Isolados à margem de uma floresta, eles vão cair em desgraça quando o filho caçula, um bebê, é sequestrado por uma feiticeira. A mãe, Katherine (Kate Dickie), desconfia que a filha mais velha, Thomasin (Taylor-Joy), que estava cuidando da criança quando ela sumiu, seja também uma bruxa — acusação reforçada pelos seus irmãos gêmeos menores, sempre às voltas com um bode preto.
Eggers inspirou-se em lendas e em relatos reais da época — como o das chamadas bruxas de Salem (também na Nova Inglaterra, em 1692) e o das freiras possessas de Loudun (na França, em 1634) — para refletir sobre "o medo do poder feminino e o processo de transformá-lo em algo obscuro e mau", como definiu. No seu caldeirão, A Bruxa mistura temas como o desabrochar da sexualidade, o fanatismo religioso e o caráter repressor da sociedade, cozinhando influências como os filmes de Ingmar Bergman e a pintura O Sabá das Bruxas (1798), de Francisco Goya. Produção baratíssima (custou apenas US$ 4 milhões), o filme é eficaz em recriar a austera vida dos colonos ingleses nos Estados Unidos de princípios do século 17, em que a cenografia e o figurino encontram eco na fotografia de Jarin Blaschke, calcada na luz natural e de velas, e na música solene de acento sacro de Mark Korven.
Por O Farol, o cineasta recebeu o prêmio da crítica no Festival de Cannes — o filme também concorreu ao Oscar e ao Bafta de melhor fotografia, novamente assinada por Blaschke. Na trama, Eggers permanece na Nova Inglaterra, mas avança no tempo (agora estamos no início dos anos 1880) e inverte o foco, dando protagonismo aos homens. De novo, mesclou sua pesquisa histórica — diários de marinheiros e faroleiros — a lendas (no caso, da mitologia grega). Peças de ficção, como o clássico romance Moby Dick, de Herman Melville, e os contos de horror fantástico de H.P. Lovecraft, um notório filho da Nova Inglaterra, também contribuíram para o roteiro escrito a quatro mãos com o irmão, Max, assim como se fazem presentes elementos da psicanálise — afinal, o próprio Eggers já declarou que "a escuridão dentro da mente do ser humano é o tipo de horror que me interessa".
Visualmente, mas também tematicamente, as referências estéticas são os filmes do dinamarquês Carl Theodor Dreyer, autor de A Paixão de Joana d'Arc (1929) e O Vampiro (1932), e o expressionismo alemão, movimento que floresceu na de década de 1920 — F.W. Murnau, de Nosferatu (1922), é um dos diretores preferidos de Eggers, ao lado do já citado Bergman e do austríaco Michael Haneke, de Violência Gratuita (1997) e A Fita Branca (2009), com quem o estadunidense compartilha o gosto de perturbar a audiência.
Combinados à sinistra trilha musical de Mark Korven e aos atordoantes efeitos sonoros, todos esses pontos criam uma rara experiência sensorial, emoldurada pela fotografia em preto e branco produzida captada com equipamentos antiquíssimos (como uma lente francesa de 1905 e uma película ortocromática, que obscurece todos os tons de vermelho, incluindo os poros e vasos sanguíneos do rosto dos atores). O formato de tela é menor do que o tradicional: um quadrado, e não um retângulo. Esse aspecto formal atende ao objetivo de forçar um duplo isolamento: o do espectador, momentaneamente apartado do cinema mais convencional, e, claro, o dos personagens, afastados do convívio com o mundo (as bordas da tela) e confinados a um espaço claustrofóbico (o quadrado centralizado na tela).
Eles são os marinheiros Thomas Wake (Willem Dafoe), um hirsuto veterano, e Ephraim Winslow (Robert Pattinson), seu subalterno. Os dois acabam de chegar a uma ilhota desabitada, onde, durante um mês, cuidarão de um farol (a propósito, construído especialmente para o filme). Lá, uma rotina dura e monótona os consome. O silêncio só é quebrado pelo barulho do mar, por ruídos metálicos e pela incômoda sirene do farol. Gaivotas, nem sempre amistosas, são a única companhia.
Não demora para que os dois homens percam a noção do tempo e o juízo (atenção: pode haver spoilers em frente) — "O tédio transforma os homens em vilões, é a oficina do diabo", alerta Thomas; o único remédio é a bebida. A relação entre os faroleiros é de animosidade _ o mais velho distribui ordens e ofensas ao rapaz, que vai perigosamente alimentando o ressentimento, ao mesmo tempo em que se permite, às escondidas, masturbar-se enquanto vela o sono do companheiro de infortúnio. Quando embriagados, unem-se para cantar e dançar músicas sobre "vadias assanhadinhas".
Também não demora a acontecerem coisas estranhas (daqui por diante, os spoilers serão mais pesados). Tanto um quanto o outro guardam mistérios e camuflam seu passado. Aparições, como a de uma sereia, vão levantar dúvidas em Winslow e no espectador: o que é real e o que é fantasmagoria? Quem, dos dois personagens, é o mais louco? Por que diabos Thomas não deixa o subordinado subir até a luz do farol?
Essa capacidade de distorcer nossa percepção e nos incitar à reflexão — seja solitária, seja buscando textos analíticos, seja na conversa com os amigos — é uma das tantas virtudes do filme. Que é uma obra aberta a interpretações: há quem a veja como um estudo sobre a loucura, ou como uma meditação sobre a masculinidade tóxica, ou como uma representação de embates perenes (o velho contra o novo, o conhecimento teórico diante do conhecimento prático, Homem versus Divindade).
A explicação que escolhi não é minha, a encontrei, primeiramente, em um post do professor de Comunicação Ciro Inácio Marcondes, da Universidade Católica de Brasília, no Facebook, e a partir dali fui pesquisando mais e refazendo, na cabeça, o caminho do filme para juntar supostas pistas espalhadas por Eggers. A fotografia em preto e branco, que traduz uma dualidade; a revelação, em um diálogo, de que o verdadeiro prenome de Winslow é o mesmo de Wake, Thomas, que significa "gêmeo" em sua origem aramaica; e a própria declaração do diretor sobre a escuridão da mente humana reforçam a seguinte teoria: os dois faroleiros são a mesma pessoa.
Talvez o mesmo fantasma, como apontou Marcondes. Os dois estão condenados a um eterno retorno àquele farol assombrado, onde o mais jovem encontra e mata a sua versão envelhecida e enlouquecida, dando início a um novo ciclo de tormento. A última cena é emblemática: nu, Winslow está deitado nas rochas enquanto uma gaivota dilacera seu fígado — que, tal qual no mito de Prometeu, vai se regenerar no dia seguinte, para que a tortura continue.
Na mitologia grega, Prometeu foi punido por ter roubado o fogo de Héstia (que representa o conhecimento) e dá-lo aos mortais — Zeus temia que estes se tornassem tão poderosos quanto os próprios deuses. Winslow é castigado por ter descoberto a verdade _ é isso o que o personagem de Dafoe procura evitar ao impedir que o de Pattinson chegue à casa de luz. De certa forma, Wake (que pode ser traduzido como Desperto) quer poupar Winslow do sofrimento que já conhece. Não à toa, quando o jovem enfim sobe à torre, termina por despencar escada abaixo, em uma descida ao inferno. Não faltaram avisos: a todo instante, como onda, como chuva, como goteiras ou como infiltração, a água — uma metáfora do inconsciente ou da memória — fustiga o protagonista.