Vinte e cinco anos atrás, no dia 14 de maio de 1997, Michael Haneke dividiu os jurados do Festival de Cannes ao apresentar Violência Gratuita (Funny Games), filme disponível na plataforma de streaming Reserva Imovision. Uns aplaudiram, outros acharam incômodo demais. Certo é que ninguém fica indiferente ao cinema do diretor austríaco.
Haneke, hoje com 80 anos, é um dos raros cineastas que conquistaram duas vezes a Palma de Ouro nas quase sete décadas da mostra de Cannes (os outros foram Alf Sjöberg, Shohei Imamura, Francis Ford Coppola, Bille August, Emir Kusturica, Ken Loach, os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne e Ruben Östlund). Alcançou essa façanha com A Fita Branca (2009) e Amor (2012), que também ganhou o Oscar de longa internacional.
Ele especializou-se em provocar mal-estar na plateia, engajando fãs e também detratores. Seus filmes refletem, sem pudores, sobre assuntos espinhosos como a intolerância, a xenofobia, o ressentimento de classe, o excesso de conforto que cria uma sociedade incapaz de encarar a realidade, o fetiche das imagens e da cultura midiática.
— Todos os meus filmes falam da violência. É impossível não lidar com isso se você está filmando no mundo atual — disse à época de A Fita Branca.
Há aspectos formais comuns, como enumerou em artigo publicado em ZH, em 2012, o jornalista e crítico de cinema Marcelo Miranda: "a brutalidade filmada fora de quadro, o uso do som como elemento de perturbação, a inserção de imagens de vídeo como propulsores da narração, o profundo rigor nos enquadramentos e em longos planos, a personalidade gélida dos protagonistas, a visão amarga e política para o universo retratado". O tom pessimista e o gosto pelo choque são armas para obter "a primeira e principal" coisa que Haneke espera do público: uma reação. Foi o que ele afirmou na estreia de A Professora de Piano (2001) em Cannes. Nesse filme, que recebeu o Grande Prêmio do Júri e os troféus de melhor atriz (Isabelle Huppert) e ator (Benoît Magimel), o diretor conta a história de uma professora de piano do Conservatório de Viena. Aos 40 anos, ela mora com a mãe, não bebe nem fuma, mas frequenta cinemas pornôs e peep-shows. A certa altura, inicia uma relação repleta de jogos sadomasoquistas com um jovem aluno. O diretor comentou ao jornal britânico The Independent:
— Obviamente, ela não é louca, e é isso o que a torna interessante. Em todos os meus filmes, eu uso os extremos, sejam eles incidentes ou comportamentais, como uma forma de mostrar o que é típico em nossa sociedade. É por meio desses casos extremos que você pode representar melhor a normalidade.
Violência Gratuita funciona como um cartão de visitas. Nas palavras do saudoso crítico de ZH Tuio Becker (1943-2008), Michael Haneke estava interessado em discutir "as consequências da violência na mídia e da mídia como produtora de violência". No filme, dois jovens, Paul (interpretado por Arno Frisch) e Peter (Frank Giering), aterrorizam uma família de férias em uma casa à beira de um lago na Áustria: Georg (Ulrich Mühe), Anna (Susanne Lothar) e o pequeno Georgie (Stefan Clapzynski). É o típico enredo dos filmes sobre invasão domiciliar, mas Haneke acrescenta um terceiro fator na trama: o próprio espectador.
Quando Paul resolve praticar um jogo cruel — que envolve o cão da família —, o personagem se vira para a câmera e, em um close, pisca um olho marotamente. Essa piscadinha abala nossas estruturas, porque nos tira de uma posição passiva e nos torna conscientes do papel como consumidores da violência. Viramos voyeurs do martírio alheio, cúmplices das agressões de Paul e Peter.
Depois, Paul vai novamente se dirigir diretamente para a câmera, questionando se já estamos fartos ou se queremos mais daquele suplício físico e psicológico. O público tem a chance de, no mínimo, parar de assistir. Aos reféns torturados, Haneke acena com uma reviravolta para, logo em seguida, refazer os caminhos traçados. Em outra subversão do subgênero da casa invadida, subtrai a habitual catarse. Ao usar um controle remoto para rebobinar a cena em que Anna se solta e mata o agressor Peter, Paul não está assumindo o lugar do cineasta, mas, sim, o de um de nós, ávidos pelo terror — talvez por um caráter sádico, talvez por masoquismo, talvez por usarmos a ficção como um reflexo invertido de nossas vidas felizes (a questão do balanço, do equilíbrio de sentimentos opostos).
Dez anos depois, Haneke refilmou a mesma história, agora com um elenco de Hollywood — Naomi Watts, Tim Roth e Michael Pitt —, mas o impacto não foi o mesmo. É provável que as plateias já estivessem anestesiadas com a violência de títulos como Desejo e Obsessão (2001), Irreversível (2002), Alta Tensão (2003), Jogos Mortais (2004) e O Albergue (2005). Aliás, àquela época até desenhos animados investiam em ator brutais — vide Happy Tree Friends, sucesso na internet, onde estreou em 2000, e na TV, a partir de 2006.
Mas não sou hipócrita nem falso moralista: às vezes, a violência, ou melhor, a fantasia da violência também cumpre papel importante. Pego como exemplo Resgate, lançado pela Netflix em 24 de abril de 2020, dia em que mais de 2,7 milhões de casos de covid-19 já haviam sido confirmados no mundo, com 192 mil mortes. Estávamos todos acuados pela emergência sanitária, pela crise econômica e pela turbulência política.
O filme ofereceu o descanso para o cérebro e o banho de adrenalina de que precisávamos. Projetamos no mercenário encarnado pelo carismático Chris Hemsworth a fé e a esperança de que, no final, tudo vai dar certo. Sob a guarda da ficção, nos permitimos a violência abominável na vida real, mas libertadora e até fascinante quando de mentirinha. Tipo um videogame, podíamos inclusive matar — e o cruzamento desse limite moral era favorecido pela abundância de inimigos sem rosto, que se multiplicavam como os vírus que devíamos eliminar para preservar a vida.